João Moreira Salles elegeu seus filmes-faróis pela primeira vez há seis anos, no antigo DocBlog. Apontou então apenas cinco filmes. No ano passado, voltei a ele para a revista Filme Cultura nº 56 e pedi-lhe que atualizasse a lista, agora com dez títulos. A nova lista está abaixo, junto com a entrevista que publicamos na ocasião.
Filme Cultura: Notícias de uma guerra particular, Nelson Freire, Entreatos e Santiago são filmes que se tornaram modelos de excelência para o documentário brasileiro. Que papel têm eles na sua autopercepção como documentarista?
João: Os filmes citados têm méritos, mas não acredito que cheguem a configurar uma obra, no sentido de um conjunto cujas partes se articulam para propor uma ideia particular do cinema documentário. O que consigo perceber na sucessão destes filmes é uma progressiva mudança de ênfase nas minhas preocupações, do tema para a forma. Notícias é um filme cujos autores – Kátia [Lund] e eu – estão pouco preocupados com as questões da não-ficção; o que nos interessa é o mundo lá fora. É como se o filme não tivesse consciência de si como cinema. Chega-se ao último título da tua lista, Santiago, e o que se vê é o contrário disso. Entreatos e Nelson Freire são as etapas intermediárias deste processo. Não atribuo a esse percurso um caráter virtuoso, como se ele atestasse o progresso de um documentarista. Filmes voltados para dentro de si mesmos, como Santiago, podem ser insuportavelmente artificiais e presunçosos, enquanto inúmeros filmes para fora, como Notícias, marcaram a história do gênero. O percurso é apenas o reflexo das minhas preocupações: hoje, o filme me interessa mais quando diz algo sobre o próprio cinema.
FC: Há seis anos o público e a crítica se perguntam se e quando você voltará a dirigir.
Do modo como vejo as coisas, não deixei de trabalhar com o que me interessa, que é o mundo e às formas de representá-lo. Continuei a produzir narrativas não-ficcionais, trocando a câmera pelas palavras [na revista piauí]. Minha impressão é que todos os perfis e reportagens que escrevi eram mais apropriados à forma escrita. Jamais me passou pela cabeça filmá-los. Tema e forma estavam bem adequados. Inversamente, há materiais que se prestam mais ao cinema, e há pelo menos um ano venho dedicando meu tempo livre a estudar imagens de arquivo dos anos de 1967 e 1968. Tenho vontade de montar um filme com sequências que não são minhas – um filme de compilação, portanto – que me permita refletir não sobre os acontecimentos históricos ali representados, mas sobre a maneira como as pessoas aparecem nestas imagens. Não sei se dá filme, mas tenho vontade de me dedicar a isso no segundo semestre de 2012.
FC: Chegou a ser noticiado seu projeto de fazer um filme sobre as viagens de sua mãe à China nos anos da Revolução Cultural. Isso foi deixado de lado? Está em alguma gaveta, como tinha ficado o projeto de Santiago?
O projeto que descrevi acima nasceu desse material filmado por minha mãe em 1967. São rolinhos de Super-8 que guardo há muito tempo. Hoje, já não sei se eles serão incorporados ao projeto. As imagens são muito precárias, amadoras, mas essa não é a razão principal. Ao utilizá-las, o filme ganhará imediatamente um caráter autobiográfico, e já não sei se é isso que quero. É uma decisão que tomarei na ilha de edição, caso o filme seja mesmo feito. Não é certo que será.
FC: A piauí acabou se firmando como um espaço de debate também para o cinema, através da coluna do Eduardo Escorel. Como você analisa essa atuação da revista?
Não só cinema. Uma revista como a nossa não pode ficar à margem do debate cultural. A gente tem ambições não realizadas nessa área. Queremos ser relevantes, mas ainda falta estrada para acertar a mão. Eduardo apontou a direção, e hoje continua a contribuir com o blog. A meu ver, o maior mérito das colunas e posts dele é o fato de estarem a serviço de uma ideia de cinema, e é isso que se espera de um crítico. Não se trata de gostar ou não de um filme, mas de entendê-lo no contexto das questões centrais da atividade, indagando sempre como cada realizador responde a cada uma delas. Esses desafios vão desde as implicações econômicas de se fazer cinema num país pobre aos dilemas éticos inerentes a toda tentativa de representar a realidade.
FC: Produzir o Eduardo Coutinho tem sido para você uma atividade paralela no cinema. O que pode dizer dessa relação depois de tantos anos?
Tê-lo como amigo é mais importante do que tê-lo como colega de profissão. Se as recompensas pessoais são hoje bem maiores do que as profissionais, isso te dá um pouco a medida de como essa amizade é importante para mim. Sou produtor dos filmes dele, e não hesito em dizer que boa parte do que pensei a respeito do documentário é resultado direto desse convívio profissional, mas hoje o cinema é secundário na nossa relação. Existem coisas mais fundamentais. E olha que tenho plena consciência de que meu desempenho na produção dos filmes que ele dirigiu desde Babilônia 2000 me torna parte da construção de um dos raros conjuntos de filmes brasileiros aos quais se pode dar o nome de obra. Ainda assim, isso ficou em segundo plano.
Os filmes-faróis de João Moreira Salles
“É importante sublinhar que essa lista não compreende os “dez melhores filmes da minha vida”. São apenas os títulos que me ocorrem no momento em que você me pediu para escrever. Por óbvio, deixei de lado os clássicos acima do bem e do mal, como Cabra marcado para morrer, O homem com a câmera, etc.
A oeste dos trilhos (Wang Bing, 2004): um épico de oito horas sobre a dissolução de uma cidade operária na China. Cinema de observação patologicamente minucioso (ou seja, da melhor variedade). Bing passou anos registrando cada casa sendo destruída, cada forno se desfazendo, cada operário que adoece.
O poeta do Castelo (Joaquim Pedro de Andrade, 1959): pelo simples fato de achar muitíssimo simpático assistir ao Manoel Bandeira fazendo torradas.
Videogramas de uma revolução (Harun Farocki, 1992): um filme de compilação que é simultaneamente o registro em tempo real de uma revolução popular e uma reflexão sobre a relação do poder com as imagens.
A caminho da eternidade (Michael Madsen, 2010): um dos raros filmes com pretensões filosóficas que conseguem estar à altura de suas ambições. A partir do dilema de como acondicionar o lixo nuclear de usinas atômicas, Madsen faz uma reflexão fascinante sobre o abismo linguístico e cognitivo que nos separa das futuras gerações.
As cinco obstruções (Jorgen Leth e Lars von Trier, 2003): por conseguir ser ao mesmo tempo perverso e afetuoso.
Diário de uma busca (Flávia Casto, 2010): para mim, o mais bonito filme sobre a geração dos anos 1960. Uma demonstração de como o afeto e a história pessoal abrem vistas para a grande história.
La bocca del lupo (Pietro Marcello, 2009): uma história de pobreza, violência e tolerância sob o pano de fundo da desindustrialização de Gênova. Triste e tocante.
Terra deu, terra come (Rodrigo Siqueira, 2010): raríssimas vezes vê-se um primeiro filme em que o domínio dos meios narrativos seja tão surpreendente. Rodrigo é capaz de conjurar um mundo de espíritos e palavras raras que pouca gente imaginava existir fora da literatura.
Iracema, uma transa amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1976): o fato de não saber se cabe direito nesta lista já o torna suficientemente interessante para constar dela. A meu ver, um dos melhores filmes do cinema brasileiro.
Cocorico Monsieur Poulet (Jean Rouch, 1974): tão híbrido quanto Iracema, a que inspirou, e portanto outro intruso na lista. Não importa: é o melhor road movie já realizado.”