Karim Aïnouz

Karim Aïnouz iniciou hoje as filmagens brasileiras de Praia do Futuro. O roteiro foi escrito em Berlim. Na história há dois irmãos. O mais novo desaparece no Brasil e, anos depois, procura o mais velho na capital alemã. Em julho do ano passado, entrevistei Karim de Berlim para a revista Filme Cultura nº 55, matéria que reproduzo parcialmente aqui:

AppleMark

– Sou filho único, e falar de dois irmãos é falar de algo que nunca pude experienciar. Este vai ser um filme sobre a aventura, o risco, a utopia. Um dos personagens principais é um salva-vidas, alguém que vive no mar. Estou escrevendo em Berlim porque vejo o filme também como uma expressão íntima do que essa cidade-fênix passou por conta da divisão e da reunificação da Alemanha. Uma cidade que se reinventa a cada tantas décadas, sempre apontando um novo futuro.

O último longa-metragem assinado por Karim é Abismo Prateado, que ainda espera lançamento comercial. Esse filme é um apanhado de impressões sobre as primeiras 24 horas de uma mulher após ser abandonada pelo marido. Numa carreira que inclui Madame Satã, O Céu de Sueli e Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo, fica óbvio o revezamento entre personagens centrais masculinos e femininos.

– Pensando nisso, reconheço uma vontade de alternância. A partir do gênero e da orientação sexual dos personagens, procuro adentrar um determinado universo. Além disso, gosto de filmar corpos. É como filmar vidas. Depois de Abismo, bastante feminino, Praia do Futuro é um filme de homens, com muita máquina, mar, sal, pedras etc. Há ainda o desejo de não me repetir, de que cada filme seja um espaço que eu não conheço.

Abismo Prateado se inspira numa canção de Chico Buarque, enquanto Satã partia de um personagem real e Suely e Praia são argumentos originais. Nenhum livro, por enquanto.

– Essas matrizes muito diferentes têm a ver com a minha busca de um desafio distinto a cada filme. Mas todas elas me servem para compor retratos de personagens, muitas vezes em contato apenas consigo mesmos. Mais que uma narrativa, considero Abismo um ensaio sobre a representação de uma sensação no cinema, um instantâneo da Violeta, para usar expressão que tem a ver com a minha paixão pela fotografia. Viajo já apontava nessa direção de uma pós-narrativa, que é mais um disparador do que o mapa do filme.

Apesar da admiração da crítica e de uma plateia fiel, Karim não se deitou sobre os louros do sucesso. Ao contrário, dá mostras de inquietação com o seu lugar dentro do cinema brasileiro.

– O contexto e o mercado hoje são muito diversos de quando eu comecei a fazer cinema. Houve uma mudança radical na maneira de se consumir o audiovisual. Então fico me perguntando que relevância na arena pública tem esse cinema ‘menor’, mais artesanal, que eu gosto de fazer. Está cada vez mais difícil esses filmes existirem. O número de pessoas que vão assisti-los é cada vez menor. Será que o cara de 20 anos, que está cheio de tesão pela vida, vai querer ver Abismo Prateado? Por outro lado, não sei se eu gostaria de fazer outro tipo de filme considerado mais popular.

Veja a seguir os filmes-faróis de Karim Aïnouz

1. O Medo Devora a Alma, de R.W. Fassbinder, 1974
Adoro esse filme pela simplicidade e ao mesmo tempo pelo exagero. É um filme que perfura o coração e que ao mesmo tempo consegue fazer uma crítica profunda a um estado de coisas, ao racismo, à xenofobia. Um filme que fala de questões que estavam adiante do seu tempo. Um grande melodrama.

2. Deserto Vermelho, de Michelangelo Antonioni, 1964
Pela visualidade deslumbrante, pelo elenco, por uma experiência sensorial, olfativa, física. Um filme que não é sequestrado pela trama e pela narrativa e que se configura como puro cinema. Nada como ver Monica Vitti nesse filme – singular, sexy e atormentada.

3. Fama, de Alan Parker, 1980
Lembro quando vi este filme pela primeira vez, devia ter 12 ou 13 anos, estava de férias no Rio de Janeiro, foi em um cinema em Copacabana. No final quando começou a tocar Last Dance, parecia que o cinema inteiro ia se levantar e dançar sem parar. (Aqui Karim se enganou quanto à canção e pediu para desconsiderar a referência)

4. Os Embalos de Sábado à Noite, de John Badham, 1977
Na minha opinião todo filme deveria ter no mínimo uma cena de dança. Cinema e dança para mim são partes do mesmo ímpeto. John Travolta dançando na pista de luzes pisca-pisca é um clássico para o cinema.

5. Imitação da Vida, de Douglas Sirk, 1959
Pela capacidade de falar de um tema tão importante para o seu tempo, o racismo, de maneira tão assombrosa. Um dos melhores melodramas de todos os tempos. Nunca esqueço das cores, puro Technicolor. Uma realidade alterada e potente.

6. 35 Doses de Rum, de Claire Denis, 2005
Alem de ser fã do cinema da Claire Denis como um todo, sem saber explicar direito por quê, adoro particularmente esse filme. Ela consegue narrar sem falar, pelas pequenas ações, pelos olhares, pelo movimento dos corpos na tela, pela descrição do cotidiano. O oposto do Woody Allen, um dos cineastas mais sem graça das últimas décadas.

7. A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, 1985
Inesquecível. Por causa da Marcélia Cartaxo, por causa da Macabea, pela maneira como adaptou um romance inadaptável, pela emoção que me causou. Um filme minimalista na forma e explosivo na dramaturgia.

8. Je t’Aime… Moi non Plus de Serge Gainsbourg, 1976
Pelo tesão, pelo puro tesão de ver a Jane Birkin e o Joe d’Alessandro, nus, tesudos e fodendo sem parar. Tenho saudade e sinto não termos mais filmes contemporâneos com essa força, com essa coragem, com essa sensualidade.

9. Viver a Vida, de J.L. Godard, 1962
Pela cena da Anna Karina dançando em volta da mesa de sinuca. Liberdade, liberdade, liberdade. Um filme livre, abusado, em preto branco. Um filme que consegue traduzir a irreverência do seu tempo.

10. Os filmes de Stan Brakhage
Por ser um cinema que, à primeira vez que eu vi, não entendi que era cinema. Cor e som no tempo. Um cinema abstrato, que coloca o cinema narrativo no seu lugar. O cinema pode ser muito mais do que uma historia bem contada, ele pode ser também uma experiência audiovisual abstrata e inesquecível.

Extras: Giselle, de Victor di Mello, 1980; Un Chant d’Amour, de Jean Genet, 1950; Z, de Costa Gavras, 1969.