Luiz Carlos Lacerda

Publicado originalmente em agosto de 2011

Filho do produtor João Tinoco de Freitas, ex-assistente de Ruy Santos e Nelson Pereira dos Santos, o célebre “Bigode”, menos conhecido como Luiz Carlos Lacerda, carrega o cinema no sangue desde que botou a literatura em segundo plano a partir dos anos 1960. Suas referências e admirações são tantas que ele não conseguiu limitar-se a 10 filmes-faróis. Citou 16, obrigando o blog a listar seus “extras”, conforme abaixo.

Seus filmes mais conhecidos têm a marca da contestação comportamental, sendo dois deles em torno de sua grande amiga Leila Diniz: Mãos Vazias (1971), protagonizado por ela, e Leila Diniz (1987), uma cinebiografia amorosa. O Princípio do Prazer (1979) incluía entre vários temas controversos o incesto, a alienação social e a criação de um monstro em cativeiro. Autor de muitos curtas documentais sobre artistas brasileiros, “Bigode” teve as relações internacionais como subtema de suas duas últimas comédias, For All – O Trampolim da Vitória (1997) e Viva Sapato! (2004). Desde então, há quem pense que ele desligou a máquina criativa. Mas isso está longe de ser verdade.

A televisão e os festivais continuam exibindo seus vídeos mais recentes, que não são poucos. É o caso de A Morte de Narciso, perfil do fotógrafo Alair Gomes, precursor do nu masculino na fotografia brasileira. Ou de Ze.com e Esta Pintura Dispensa Flores, perfis dos pintores Zé Tarcísio e Victor Arruda, respectivamente. A partir de contos de João do Rio, realizou o vídeo de ficção Vida Vertiginosa. Sobre a passagem pelo Brasil do grupo Living Theatre, fez o média Diário de Aquário. Para a série Retratos Brasileiros do Canal Brasil, dirigiu programas sobre os atores Paulo Villaça, Arduíno Colasanti, Carlos Kroeber, Maria della Costa e Nildo Parente; os cineastas Alex Viany e Ruy Santos (este ainda inédito), o dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o cenógrafo Anísio Medeiros e o montador Raimundo Higino, além de seu pai João Tinoco.

Este ano, “Bigode” concluiu e estreou no Cine-PE o longa documental Casa 9, evocação de um célebre endereço no Rio, onde ele morou nos anos 1970 e era um point de gente de cinema e de música. Nos últimos anos escreveu os roteiros dos longas Bom Crioulo (adaptação do romance homônimo de Adolfo Caminha); Nisia (sobre a feminista potiguar do século XIX); e Gloria (vida da atriz Darlene Gloria). No momento, dedica-se a roteirizar o longa Introdução à Música do Sangue a partir de um argumento inédito deixado especialmente para ele pelo escritor Lúcio Cardoso (1912-1968), um dos seus mentores intelectuais e cujos 100 anos de nascimento se comemoram em 2012.

Outra atividade frequente têm sido os workshops de direção nas Mostras de Tiradentes, Ouro Preto e Belo Horizonte, entre outros locais. A oficina do Recine este ano será com ele – e já está batendo recorde de inscrições.

Quem quiser conhecer melhor a trajetória de Luiz Carlos Lacerda pode ler o livro preparado por Alfredo Sternheim para a Coleção Aplauso, Prazer & Cinema.

Mas só aqui você encontra os comentários de “Bigode” sobre os filmes que mais pesaram na balança da sua formação. Fique, então, com os seus Faróis:

Sinfonia Amazônica, de Mário Latini

Acostumado a ver as sessões Tom & Jerry nos primeiros domingos do mês às 10 h da manhã no Metro Copacabana com minha mãe, assistir a um filme falado em português, com curumins, araras, saguis, papagaios e tamanduás foi um dos maiores acontecimentos na minha infância. Essa foi a primeira grande emoção que o cinema me proporcionou.

Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica

Eu fazia parte do público dos filmes americanos da Metro, os musicais com Fred Astaire e Ginger Rogers; os capa-e-espadas com Stewart Granger; os dramas com Elizabeth Taylor e Montgomery Clift, etc.Ver com meu pai esse filme do De Sica – P&B, com não-atores selecionados entre os pobres vitimados pelo desemprego do pós-guerra – foi muito marcante. Não tinha ainda consciência do quanto aquela forma de filmar influenciaria o cinema independente no mundo, impulsionaria através do Nelson Pereira dos Santos a ir pras ruas filmar a nossa realidade, com nossos atores, brancos e negros, alguma coisa a que hoje chamamos de identidade cultural.

Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos

Meu pai, João Tinoco de Freitas, foi um dos produtores.Vi a filmagem da sequência com Glauce Rocha e Roberto Bataglin (de fuzileiro naval) na Avenida Atlântica. Esse filme marcou a minha vida pessoal – os amigos de meu pai Alex Viany, Ruy Santos e o próprio Nelson frequentavam nossa casa aos domingos, e eu ouvia as discussões políticas e estéticas, a proibição do filme pela polícia.Vê-lo na tela confirmava tudo aquilo que eles falavam : a necessidade de um cinema que refletisse e ajudasse a discutir os problemas brasileiros. Foi emocionante constatar que havia uma preocupação com a psicologia dos personagens, herança das emoções contidas nos filmes neorrealistas italianos.Gostava muito e era frequentador das chanchadas, mas o mesmo efeito que me provocou Ladrões de Bicicleta em relação aos filmes da Metro, foi o de Rio 40 Graus em relação às chanchadas maravilhosas com Oscarito, Grande Otelo, Ankito, Zé Trindade e Violeta Ferraz.

Tabu, de Murnau

A utilização de não-atores, a deslumbrante luz de sua fotografia (somente comparável à de Gabriel Figueroa nos filmes de Buñuel, com certeza seu discípulo), a mise-en-scène despojada e que poderia vislumbrar-se no que mais tarde se convencionou chamar de naturalismo, a narrativa quase naïf, talvez numa homenagem inconsciente às pinturas de Paul Gauguin em seu exílio voluntário na então colônia francesa – o Taiti…. Esse filme também revi muitas vezes, movido pela paixão da primeira visão.

Pickpocket, de Robert Bresson

Esse mestre do cinema europeu reafirmava minha experiência estética que os filmes de Mário Peixoto, Bergman, Murnau, Buñuel, e mais tarde Pasolini, Antonioni, Bertolucci e Visconti provocavam. Bresson era a radicalidade da autoria, da afirmação soberana do tempo infinito enquanto necessário de um plano; a construção cinematográfica que contestava a pressa burguesa de um cinema que se pretendia mercadológico e de entretenimento puro e simples.Alguma coisa também moral me sinalizava, a admiração pelo personagem do ladrão, que o aproximava de Jean Genet no pavilhão do malditismo de outros artistas outsiders que sempre admirei.

Pierrot le Fou, de Jean-Luc Godard

Essa versão de Une Saison en Enfer, de Rimbaud, me arrebatou. Não sei se pelo anarquismo de seu discurso cinematográfico, pelo descumprimento das regrinhas de continuidade, de edição, da quebra de uma hierarquia convencional de decupagem, ou pela imediata identificação com a poesia do jovem Rimbaud – meu poeta preferido.

Zabriskie Point, de Antonioni

A beleza das imagens, a fotografia hiperrealista e antropofagizada da TV, em especial da publicidade, substituíram com esse filme todo e qualquer discurso político sobre a questão da poluição do meio-ambiente, da dominação do marketing e sobretudo da sociedade de consumo que nos levou ao desastre em que o planeta se transformou hoje.

No longuíssimo plano final, uma explosão de tudo o que podemos imaginar de chamados “bens duráveis”, em câmera lenta, toda a produção do capitalismo midiático e consumista vai pelos ares. E identificamos a solidão de cada objeto, como se fosse possível esculpir o retrato da solidão do homem moderno através deles.

Panorama do Cinema Brasileiro, de Jurandyr Noronha

Trabalhei nesse filme como assistente. Foi a grande aventura que me possibilitou ver filmes raros e conhecer algumas figuras históricas do nosso cinema (Humberto Mauro, Mário Peixoto, Adhemar Gonzaga, José Medina, o crítico Jose Sanz). Foi o filme que me revelou a grandeza da cinematografia realizada pelos cineastas brasileiros, a diversidade de olhares e de intenções estéticas ou simplesmente comerciais – mas até essas, equivocadas ou não, reveladoras de um estilo que nos distingue e nos identifica.

Esse filme solidificou minha formação como cineasta, numa época em que o acesso a essas informações era tida como impossível. A sensibilidade de J. Noronha ao lidar com uma equipe de “consultoria histórica” que tenderia a  consolidar suas preferências cinematográficas, a sua imparcialidade, me impressionaram e me ensinaram muito. E o seu faro, paciência de arqueólogo dessas imagens que hoje constituem um patrimônio dos mais importantes da nossa cultura .

Verdades e Mentiras (F for Fake), de Orson Welles

Sempre fui aficionado dos filmes de Welles, mas esse especialmente, por tratar de questões contemporâneas como a ética e a autoria na obra de arte. O que são a mentira e a verdade? – seus conceitos cambiáveis e mutantes, determinados pela bússola da moral que está no poder no momento. E inaugura uma montagem nova, desde os tempos de Eisenstein congelada, que Glauber batizaria mais tarde como “nuclear”, utilizada em seu filme “Di” – hoje absorvida pela TV e pela publicidade.

Almodóvar

Difícil definir um dos filmes dele que me marcaram e continuam me marcando. Na contemporaneidade, Almodóvar me trouxe a alegria e o resgate do prazer do cinema, de assistir e ter vontade de realizar. Representante do que se chama por cultura “camp”, mescla suas referências culturais “eruditas” (de Buñuel, inclusive) com a glorificada cultura pop da Factory de Andy Warhol, do “mau gosto” kitsch de todo o imaginário latino (de Sarita Montiel e de tangos) também incorporados pelo Tropicalismo de Caetano Veloso –  presença em alguns de seus filmes. E principalmente por ser o arauto, através de seus personagens, da inserção da expressão da homossexualidade no cinema contemporâneo, sem fazer disso uma performance mal-humorada, ressentida ou chata – que costuma ser a marca de todo e qualquer discurso militante.

EXTRAS

A Idade do Ouro, de Luis Buñuel

Na Cinemateca do MAM, reduto dos jovens cinéfilos da minha geração, comandado por Cosme Alves Neto, vi a obra-prima do mestre do surrealismo cuja obra acompanhamos enquanto ele existiu. Era a consubstanciação dessa  poética vislumbrada em Limite (que eu vira antes) como se fosse a materialidade do movimento surrealista que eu conhecia na pintura. Mestre Buñuel, for ever!

Ludwig, de Visconti

Toda a obra requintada e passional desse grande autor do cinema moderno me proporciona um prazer muito grande. Mas esse filme, em particular. Não é à toa que Visconti também dirigiu óperas. A concepção “espetacular” de seus filmes, onde o detalhe tem a fundamental importância na arquitetura conjuntural, não abandona o foco na paisagem emocional de seus personagens. A tragédia de Ludwig, sua obstinada paixão, solidão e decadência não deixam de ser uma metáfora política do mundo em que viveu Visconti – sensível às questões sociais e políticas.

Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman

Assisti com minha amiga Leila Diniz, adolescentes, no Cinema Alvorada – no Posto 6, o primeiro “cinema de arte”, programado por Fabiano Canosa. Leila chorava, eu me dividia entre uma narrativa às vezes confusa para mim e as belas imagens, os muitos e  emocionantes closes daqueles rostos torturados – que se assemelhavam aos personagens de Lúcio Cardoso, mestre da introspecção psicológica no romance brasileiro. Havia naquele filme, além da problemática da morte – tema que os neobeatniks com os quais  me identificava também prezavam –, uma construção da narrativa num tempo especial jamais visto por mim.

Memórias do Subdesenvolvimento, de Thomaz Gutiérrez Aléa

O cinema godardiano filmado na ebulição da revolução cubana inaugura um rompimento na linguagem do cinema latino só comparável ao que a fotografia de Luiz Carlos Barreto em Vidas Secas (de Nelson P. S.) seria capaz de provocar. Impressionante e provocadora também é a coragem de um enfrentamento político com o status revolucionário (a revolução dentro da revolução), seus excessos e marchas-a-ré.

A antológica sequência dos “delegados do povo” em visita ao apartamento “burguês” do personagem principal que pretende continuar acreditando na revolução, a revelação do preconceito e da inveja humanos travestidos de luta de classes é inusitada, especialmente naquele momento.

Édipo Rei e Medeia, de Pasolini

Dois exemplos de um cinema poético que me impressionaram muito. Referência onde me inspirei para realizar alguns filmes ou sequências inteiras, inconscientemente.

Nos filmes de Pasolini identifico a pintura de grandes mestres (Caravaggio, por exemplo) que foram buscar na beleza do povo das ruas a fonte inspiradora de suas obras.

Limite, de Mário Peixoto

Era a constatação de que podia existir um cinema poético! Toda a minha formação de esquerda, os discursos patrulheiros que eu ouvia contra o filme (Glauber e Alex Viany escreveram) não foram suficientes para manter o distanciamento político recomendado. A arrebatadora poética de Limite me revelou uma nova maneira de se fazer cinema.