Neville D’Almeida

Publicado originalmente em novembro de 2011

Todas as vezes que pegou numa câmera, Neville D’Almeida usou-a para fustigar alguma coisa. Fosse a moral pequeno-burguesa, com suas adaptações de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos, fossem os cânones de um cinema bem comportado e politicamente correto, com filmes como Jardim de Guerra e Piranhas no Asfalto. Do público conheceu tanto a indiferença quanto a adesão voluptuosa. A Dama do Lotação e Rio Babilônia estão entre os grandes hits de bilheteria do cinema brasileiro. Sua produção em Super 8 é uma das mais prolíficas dos anos 1970.

Em toda a sua carreira, Neville namorou também as artes visuais. Fotos, instalações e criações multimídia aparecem de vez em quando em espaços não apenas brasileiros. Agora mesmo seus Kayapoemas estão expostos na Bienal de Curitiba. Na de Veneza, ele representou o Brasil com a videoarte Verde Moreno. Ainda este ano lançará o livro Além Cinema, uma espécie de catálogo de sua obra nesses múltiplos campos, com muitas fotos e textos sobre o artista.

Projetos não lhe faltam e muitos já estão em andamento. Entre eles, as instalações Praia Carioca, Criaturas Estranhas e Redário – O Barco das Ilusões. No cinema, está captando fundos para levar às telas a peça A Frente Fria que a Chuva Traz, de Mario Bortolotto.  

Mas pode-se dizer que, na cozinha criativa de Neville, os ingredientes principais têm sido a débacle da civilização indígena e a destruição da Amazônia. Sua instalação Tambamazônica, que esteve no Oi Futuro, vai para a Alemanha e talvez os EUA em 2012. Sobre esse tema, além de Verde Moreno e dos Kayapoemas, ele tem pronto já há quatro anos um longa-metragem, Maksuara – O Crepúsculo dos Deuses, e o roteiro de um outro: Bye Bye Amazônia, que ele define como “um épico sobre a morte anunciada da Floresta Amazônica”. Uma tragédia que, em sua previsão, vai atingir a próxima geração dentro de 20 ou 30 anos.

Dos seus futuros filmes, o que deve chegar primeiro às salas não tem índio nem floresta. É A Dama do Lotação II, cuja produção Neville espera deslanchar muito em breve. Ele evita anunciar quem vai ocupar o lugar de Sonia Braga. Limita-se a dizer que “tem umas cinco atrizes que podem vir a fazer”.

Os filmes-faróis de Neville D’Almeida são quase todos obras transgressoras em suas épocas e contextos de produção. Ele escolheu apenas sete filmes, o que pode soar cabalístico. Repare que apenas um deles é posterior a 1950 – e justamente um filme dele mesmo. Mangue Bangue (1971) tem história acidentada. Durante quase 40 anos foi dado como perdido. Reencontrado nos arquivos do MOMA de Nova York, é uma experiência pop underground rodada no Mangue, antiga zona de prostituição carioca.                        

Com a palavra, Neville:

“Está aqui a relação de sete grandes filmes que de alguma maneira causaram um grande impacto na história do cinema e que tive a sorte de poder conhecer.

Un Chant d’Amour, de Jean Genet

Genet, que não era cineasta, foi capaz de fazer um dos filmes mais mitológicos da história do cinema. A coragem, a liberdade, a sensibilidade deste filme feito em 1950 tiveram um impacto brutal. Foi interditado, proibido e ameaçado de ter os negativos queimados. Genial.

Limite, de Mário Peixoto

Filmado em 1930, é um dos filmes sobre o abismo, as profundezas da alma e da mente humana. Filme mudo, mas de grande eloquência, que mostra como o silêncio é comunicante. O filme teve repercussão mundial e Mário era um artista total.

Sangue Mineiro, de Humberto Mauro

O amor, a amizade, a paixão, a opressão já estão neste filme de 1929. O cineasta com simplicidade e elegância mostra nas imagens toda a complexidade do ser humano. A fotografia de Edgar Brasil é genial, unindo uma dupla de poetas que foi Mauro e Brasil.

Ivan o Terrível, de Serguei Eisenstein

O cinema épico, sem limites de distância ou de tempo, o campo aberto, milhares de pessoas, pessoa nenhuma. Dum plano geral com 100 mil figurantes ao close de um olhar. O artista, o tempo e o espaço.

Orfeu, de Jean Cocteau

O cinema e a poesia, este mundo e o outro mundo. Cocteau rasga o véu do Realismo e mergulha em profundidade na alma humana e nos mistérios do universo. Nunca o cinema e a poesia estiveram tão próximos. Num filme totalmente urbano e ao mesmo tempo virtual e Simbólico.

A Idade do Ouro, de Luis Buñuel

É um filme que abre o espírito e a mente para as possibilidades que a criação e a invenção podem proporcionar. É a relação e a simbiose entre a arte, neste caso, com Salvador Dalí, e o cinema de Buñuel. O Surrealismo, a liberdade, a iconoclastia e a crítica social são os traços mais fortes deste que foi o segundo filme sonoro do cineasta.

Mangue Bangue, de Neville D’Almeida

Após filmar em março de 1971 Mangue Bangue, senti um impacto brutal e total que me levou a só ter coragem de revelar o filme quase dois anos depois. A liberdade sem precedentes, a entrega total, a busca sem limites dos símbolos deste nosso mundo como: As drogas, A prostituição, A política, A poesia, O Mercado Financeiro, A Bolsa, O Amor, A nudez, O Capitalismo, O uso, O Abuso e o sentido da vida – todas essas coisas – estão no filme de forma avassaladora.

Sem censura, sem pudor, sem culpa, sem hipocrisia, sem preconceito. Cada vez mais compreendo a influência dele nos meus trabalhos. Às vezes, penso no filme como se não o tivesse feito. Agradeço a Deus por ter feito”.