Octávio Bezerra

No último filme de Octávio Bezerra, Atabaques Nzinga (2009), a ficção parece uma intrusa. Taís Araújo e Léa Garcia tentam costurar, com um fiapo de história, uma série de exuberantes performances de música e dança afro-brasileiras sob a direção musical de Naná Vasconcelos. Nzinga é sobretudo um documentário musical. Por mais que se empenhe na elaboração de cenas de realismo poético, é o olho de documentarista que garante o melhor do cineasta.

Foi com docs potentes e comprometidos com o social que Octávio Bezerra construiu sua reputação de produtor e diretor independente. Ele vinha de muitas funções técnicas, aparições como ator (em El Justicero, de Nelson Pereira dos Santos, por exemplo)e investidas de produtor em filmes nacionais e estrangeiros quando estreou na direção, em 1979, com os curtas A Lenda do Quatipuru e Amerika. Este último era um doc de fotos fixas sobre a situação política da América Latina. Com o premiado média-metragem A Resistência da Lua (1985), abordou pela primeira vez a cultura negra, defendendo a preservação do Pelourinho.

Seus docs de longa metragem repercutiram com vigor ao serem lançados. Memória Viva (1987) discutia a “identidade nacional” a partir da obra de Aloísio Magalhães. Uma Avenida Chamada Brasil (1988) foi o resultado de seis meses que Bezerra e o fotógrafo Miguel Rio Branco passaram circulando num carro com rádio de polícia e flagrando assaltos, batidas policiais, crimes de esquadrões da morte e a vida dos moradores à margem da avenida. Não sem algum sensacionalismo, este filme foi um dos que anteciparam toda a atenção do cinema brasileiro para o tema da violência urbana.

Halting the Fires (Parem as Queimadas) e Life in Debt (A Dívida da Vida), realizados originalmente para TVs britânicas, ampliaram o espectro de grandes temas na filmografia de Bezerra. Já O Lado Certo da Vida Errada (1992) foi uma tentativa problemática de conciliar doc e fic numa mesma receita de filme social. Em 2004, ele falou do “cinema invisível” que existe no país através de Cinejornada, um doc sobre a Jornada de Cinema da Bahia.

No momento, Octávio se divide entre dois projetos. Um deles, documental, atende por Os Cavaleiros de Jorge e Outros Santos. Trata do compositor e ex-estivador Cláudio Camunguelo, que aparece em Nzinga. Famoso por uma festa de São Jorge que promoveu durante 30 anos com sambistas em Vista Alegre, Camunguelo morreu aos 60 anos no Natal de 2007, ainda lutando por uma aposentadoria. Através dele, Bezerra quer falar da sina do artista popular brasileiro. O outro projeto é o longa de ficção Atlântida, escrito com Orlando Senna, sobre 12 personagens que ficam retidos num bar-restaurante por conta de uma tempestade. Há pouco, ele concluiu A Visita de Alcebíades, um dos espisódios da microssérie Cinco Vezes Machado, co-produzida e exibida pelo Canal Brasil. Nessa adaptação do conto de Machado de Assis, o elenco é liderado por Tonico Pereira e Joana Seidl.        

Octávio Bezerra é o tipo de cineasta que se pauta mais pela emoção que pelo cálculo na hora de filmar. Seu cinema pode ser irregular, impuro e pouco afeito às convenções da narrativa clássica, mas tem energia, um saudável destemor ao erro e a força de um engajamento sincero. Seus filmes-faróis refletem uma curiosa pluralidade e estão marcados por recordações pessoais do realizador:

Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos (1955) – “Era a descoberta da questão social levada ao cinema. Trazia a novidade do personagem popular como protagonista”.

Ana, de Alex Viany (episódio do longa internacional Rosa dos Ventos, produzido por Joris Ivens em 1957) – “Vi com o Cosme Alves Netto, na Cinemateca do MAM-RJ. A forma de narrativa não clássica me impressionou prontamente”.                

Morrer em Madri, de Frédéric Rossif (1963) – “Assisti a esse filme no dia da morte de Franco. Eu estava fazendo uma exposição de fotos no México. Foi inesquecível”.

Histórias Extraordinárias, de Fellini, Malle e Vadim (1968) – “Como jovem pintor, eu estava em Roma na época. Era amigo da figurinista Mimina Roveda, que por sua vez era amiga de Fellini. Ela me levou à filmagem. Lembro-me de Giuseppe Rotunno chegando ao bar e dizendo a Fellini: “Maestro, la luce è pronta”. E os dois trocavam de lugar”.

Salò, de Pier Paolo Pasolini (1975) – “Vi numa memorável sessão no cineclube da ABI, durante a ditadura (o filme estava proibido no Brasil). Passei a noite em claro por causa da pujança e da violência do que tinha visto na tela”.

Quero incluir ainda três curtas do cubano Santiago Alvarez: Now!, LBJe Hasta La Victoria Siempre. “São filmes de alta eficácia política e que também funcionam a nível de autoria quando desmontam a linguagem do documentário”.