Vicente Amorim

O belo e impactante Corações Sujos está em cartaz quando esse post entra no ar, retomando a série Faróis depois de pausa de alguns meses. O drama que divide a colônia japonesa por ocasião do fim da II Guerra Mundial envolve um estudo de personalidades confrontadas com uma verdade histórica: a derrota do Japão. Os que não aceitam o fracasso da nação de origem e a ideia de que o imperador seria mortal o fazem por fanatismo ou oportunismo, sendo às vezes difícil determinar o limite entre as duas razões. Acima de tudo, paira uma crítica ao fundamentalismo nacionalista, que pode transformar um bom sentimento em matéria do Mal.

Esse quarto longa-metragem de Vicente Amorim pontua uma carreira de rara coerência, em que os temas se desdobram e o estilo se refina no interior de uma linguagem clássica. Ele faz um cinema brasileiro que não se limita a parecer brasileiro, mas dialoga com os modelos internacionais, como bem exprimem seus filmes-faróis lá embaixo.

Nascido na Áustria enquanto o pai, o Ministro Celso Amorim, servia em Viena, Vicente teve infância e adolescência ciganas. A não permanência, acha ele, foi determinante para a escolha do cinema como principal meio de expressão. Depois de fazer assistência de direção para Paul Mazursky (Luar sobre Parador) e Hector Babenco (Brincando nos Campos do Senhor), ele iniciou sua longa parceria com o roteirista e diretor David França Mendes no curta Vaidade! (1990). O primeiro longa, codirigido com David, foi o documentário 2000 Nordestes (2001), que serviu de pesquisa e preparação para O Caminho das Nuvens (2003), ficção baseada em fatos. Vicente, neto de nordestino, estava em busca de suas raízes.

A exibição de O Caminho das Nuvens no exterior atraiu para suas mãos diversos roteiros americanos. A maioria era de histórias sobre imigrantes, e nada lhe interessou. Até que topou com o roteiro de Um Homem Bom (2008), produção independente focada num escritor que se deixa usar como instrumento da propaganda nazista. Corações Sujos veio adensar sua representação dos dilemas de pessoas relativamente comuns que se veem presas de uma voragem nacionalista e da intolerância que a acompanha.

Os próximos projetos de Vicente têm cenários diferentes, mas a mesma âncora fincada em episódios reais. Um deles vai partir de argumento original de Fernando Morais sobre a Operação Peter Pan, em que mais de 14 mil crianças e adolescentes cubanos foram expatriados para os EUA por decisão de suas famílias, que não aceitavam a revolução. A cineasta Estela Bravo fez um documentário sobre o assunto no ano passado. O filme de Vicente será, em suas palavras, “uma improvável coprodução entre Brasil, Cuba e Estados Unidos”. Seu outro projeto é um thriller integralmente nacional sobre Maria da Penha, a farmacêutica que foi brutalmente maltatada pelo marido durante seis anos de casamento e cujo caso deu nome à Lei Maria da Penha de proteção à mulher no âmbito doméstico ou familiar.

Conheça a seguir os filmes-faróis de Vicente Amorim, introduzidos por algumas ressalvas importantes:

“Difícil essa tarefa de escolher os filmes que me marcaram. Acho que a única forma honesta de dizer quais são é responder de chofre, sem pensar muito. Assim o gosto não fica maquiado pela razão. As escolhas abaixo são, portanto, as de hoje, 29 de agosto, duas da tarde, e são escolhas emocionais. Sei que vou me arrepender de não ter posto um ou outro filme na lista, mas não vale ficar pensando muito. Vou deixar os japoneses de fora de propósito, por muito óbvios.

O Conformista, de Bernardo Bertolucci
As tentações do fascismo são primais. Pra mim não há bom, mas mau selvagem, fascista. Nesse filme, o Bertolucci, além de demonstrar as tais tentações, disseca a classe média e o anti-intelecutalismo. O filme é, também, muito bem filmado e fotografado. A fluidez dos movimentos, mesmo os que parecem datados – as zooms radicais – e a luz são ao mesmo tempo evocativos, cheios de personalidade (coisa que muita gente não topa) e apropriados à história. Marcello é muito próximo de todos nós, na banalidade e na angústia. Esse filme foi uma referência muito importante para meus dois últimos trabalhos, mas especialmente para Um Homem Bom.

Tempestade de Gelo, de Ang Lee
Delicado e violento, esse filme do Ang Lee me toca de forma especial, pois eu morei, com meus pais, num subúrbio americano não muito diferente do que é retratado no filme e na mesma época, o meio dos anos 1970 (embora eu fosse um pouco mais jovem que os personagens). A direção dos atores, especialmente das crianças, a poesia discreta de planos aparentemente aleatórios, a tensão, o tesão e a violência psicológica fazem desse filme um dos meus preferidos de todos os tempos.

Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha
Citar Glauber vale? É lugar-comum? Não me importo que seja. Vi esse filme dezenas de vezes: recentemente, em DVD; na cópia restaurada de alguns anos atrás, no cinema; numa cópia em 16mm que conseguimos, nem lembro como, na época de cineclube. O Brasil está definido ali em toda sua fúria barroca. Acho que uma das razões de eu fazer cinema é por causa do Glauber. Meu primeiro filme, 2000 Nordestes (codirigido por David França Mendes, meu parceiro há décadas), termina com um travelling circular e o grito “mais fortes são os poderes do povo” surrupiado da trilha do filme do Glauber (com autorização de Dona Lúcia).

Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos
Não precisa pensar muito para entender por que eu quis fazer um filme sobre uma família que atravessa o Nordeste atrás de um emprego (O Caminho das Nuvens). Além da força dramática, das atuações (incluindo a antológica e anedótica da cadela Baleia), da relevância social ululante, Vidas Secas é muito bem filmado. O plano inicial é uma aula de cinema.

Os Imperdoáveis, de Clint Eastwood
Eu sou fã de westerns. Tanto O Caminho das Nuvens quanto (e especialmente) Corações Sujos têm um quê do gênero. No filme do Clint o western é destrinchado, desmistificado e, ao mesmo tempo, resumido. O seu jeito noir, desesperançado, e seu olhar sem glamour sobre a violência são inesperados, ainda mais naquele cenário frio, quase de anti-western. Muito do que eu gosto em outros westerns, nos do John Ford e especialmente nos do Sergio Leone, estão ali. Citar este filme me dá a chance de fazer uma lista sem uns cinco westerns.

Gaviões e Passarinhos, de Pier Paolo Pasolini
A alegria anárquica e amarga deste filme ficava comigo horas depois de eu tê-lo visto. Não o revejo há anos, não sei se teria a mesma força hoje. Mas o que resta dele comigo é poderoso, meio dionisíaco. Gosto de Pasolini, também, por ele ser praticamente imune à cinefilia barata dos chatos decoradores de nomes e planos do cinema americano dos anos 40. Gosto deste filme pelo que ele representou na minha formação poética. O corvo-intelectual assado no fim diz tudo.

Os Bons Companheiros (Goodfellas), de Martin Scorsese
Para mim, o melhor filme de gangster de todos os tempos. Cínico, divertido, violento e com personagens e situações perturbadoramente tangíveis, ao contrário do que vemos normalmente neste tipo de filme. Além de tudo ele é filmado e montado de forma crua e arriscada.

O Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein
É tão óbvio listar este filme que dá vontade de deixá-lo de fora. Mas não posso, sendo esta uma lista de filmes que me marcaram. Vi pela primeira vez aos dez anos de idade, em super-8 (tínhamos este e mais uma penca de clássicos em casa, divididos naqueles indefectíveis rolos de 10 minutos) e muitas mais de lá para cá. O filme pra mim tem impacto estético e emocional (“irmãos!”) permanente.

Dr. Fantástico (Dr. Strangelove), de Stanley Kubrick
Kubrick não poderia ficar fora da minha lista. Para não colocar dois ou três, escolhi este, pois é, além de impecável esteticamente, muito engraçado. Peter Sellers genial na melhor sátira política que há, para mim.

A Vida de Brian, de Terry Jones
Nunca ri tanto no cinema na minha vida. E depois em VHS, e depois em DVD, e cada vez que vejo um trecho quando estou entediado ou sem inspiração no Youtube. Eu pensei em colocar uma comédia do Billy Wilder na lista, mas sendo a escolha emocional, não seria honesto. Ri muito com Billy Wilder, mas muito mais com Monty Python.