Cacá Diegues

Publicado originalmente em outubro de 2011

Em sua já longa carreira, por várias vezes Cacá Diegues foi ele próprio um farol para o cinema brasileiro. Desde apontar a direção do urbanismo no Cinema Novo com A Grande Cidade até produzir a tomada de expressão pela periferia em 5 x Favela – Agora por Nós Mesmos, passando pela reinvenção mítica da História com Xica da Silva e a despedida do Brasil velho com Bye Bye Brasil. Sem falar nos textos de permanente consciência crítica em ação na cultura, como foi o caso da denúncia das “patrulhas ideológicas”.

Por tudo isso, é bom saber agora quais são os faróis de Cacá no cinema. Ele respondeu a nossa consulta em mais um momento efusivo de sua trajetória. A experiência de viabilizar e orientar o novo 5 x Favela trouxe desdobramentos. Cacá fez o mesmo em seguida com o quarteto de curtas sobre as UPPS e o seriado Mais Vezes Favela, que estreia em novembro no canal Multishow enfocando o cotidiano de uma família de comunidade. Assim ele continua a acompanhar seus apadrinhados. “Eu não podia colocá-los na estrada do sonho e logo cair fora”.  

Cacá acaba de produzir também o primeiro exercício de direção de José Wilker, Giovanni Improtta, em fase de edição. Mas a atual menina dos seus olhos é a pré-produção de seu próximo longa, O Grande Circo Místico, com roteiro dele e de Georges Moura, baseado na peça homônima de Chico Buarque e Edu Lobo. “Não é um musical”, avisa Cacá, entusiasmado com a escalação já confirmada de Lázaro Ramos.

O entusiasmo de Cacá, aliás, se estende a todo o momento vivido pelo cinema  brasileiro, como se depreende de um trecho do texto que enviou a um seminário transcorrido durante o recente Festival de Brasília:

“Por ter começado tão cedo na minha vida profissional, já tenho mais de 50 anos nessa atividade, como cinéfilo e como cineasta, como espectador e como militante de nosso cinema. Mas posso garantir que, em termos estritamente cinematográficos, nunca vivi um momento tão alvissareiro para o cinema brasileiro quanto esse. Nunca tivemos tanta variedade de tendências artísticas e culturais, políticas e éticas, geracionais e regionais, todas sempre com representantes de peso e qualidade, com exemplos que conquistam nosso público, que estimulam nossos críticos e acadêmicos, que são recebidos com entusiasmo nos festivais nacionais e internacionais”.

Na hora de relacionar seus filmes-faróis, Cacá Diegues destacou cinco obras, mas usou os comentários para passar “de contrabando” outros tantos. A partir da próxima linha, é ele quem fala: “Para quem faz cinema porque ama os filmes que viu, um cinéfilo antes de ser um cineasta, é muito complicado escolher apenas cinco filmes como faróis de minha vida e de minha prática cinematográficas. Meu amor pelo cinema foi iluminado por tantos faróis de tantas cores e intensidades, sinalizando tantas diferentes direções que deram e ainda vão dando o rumo de meu caminho, é dificil dizer quais foram os mais importantes . Mas vou tentar fazer um exercício aleatório de escolha, como quem joga conversa fora com coisa muito séria. E, embora até hoje eu veja filmes que me impressionam e me influenciam muito, vou ficar com citações que não passam dos anos 1970, uma homenagem à minha formação inaugural.  Eis aí meus escolhidos. 

1. Shadows, de John Cassavettes 
Essa é minha homenagem aos “pequenos filmes” que fizeram a glória e a originalidade do cinema americano, o mais diverso do  mundo. Podia ser também “Gun Crazy”, de Joseph H.Lewis, o barroco protestante chegando ao thriller. Ou “Make Way for Tomorrow”, de Leo McCarey, essa obra-prima dos sentimentos, doce e cruel instrumento de conhecimento do outro. Como podia ser “O Falcão Maltês”, de John Huston, ou qualquer outro desses filmes que, por pequenos, puderam ser roubados dos estúdios pelo talento de seus autores. “Shadows” é também uma homenagem à reinvenção do cinema, naquele final dos anos 1950, uma lembrança de “À Bout de Souffle”, de Jean-Luc Godard, ou “Prima della Rivoluzione”, de Bernardo Bertolucci. Ou ainda de “O Anjo Nasceu”, de Julio Bressane. 

2. Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos
Só quando vi esse filme, aos 16 anos de idade, comecei a acreditar que poderia vir a ser um cineasta brasileiro. As chanchadas me divertiam, mas no limite das paródias desengonçadas e quase sempre mal feitas. A Vera Cruz era um desastre de pretensão e chatice, do qual podia-se livrar a cara apenas de Alberto Cavalcanti e de alguma coisa de “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, e de “Absolutamente Certo”, de Anselmo Duarte. “Rio 40 Graus” pensava o país e pensava o cinema, inventando um para o outro, tudo o que minha geração sonhara ser um dia possível. Depois dele,  duas iluminações na minha vida no mesmo cinema brasileiro: “Bahia de Todos os Santos”, de Trigueirinho Neto, um filme visionário e estranhamente moderno, e “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, o melhor filme brasileiro de todos os tempos. 

3. French Cancan, de Jean Renoir.
Podia ser também “La Grande Illusion”, “La Règle du Jeu”, “La Marseillaise” ou “Le Carrosse d’Or”, outras obras-primas do mesmo autor, um dos pais do cinema moderno realista, humanista e poético, ao lado de  F.W.Murnau e Roberto Rossellini. Os 20 minutos finais de “French Cancan”, totalmente dançados sem os artifícios de um balé rigoroso, mas com a grandeza de um baile da vida, é uma das mais belas expressões do que pode o cinema – eu queria fazer todos os meus filmes desse jeito! O cinema de Renoir anunciou muita coisa do que viria depois, da Nouvelle Vague francesa a todos os americanos que o conheceram em Hollywood, durante a Grande Guerra. Renoir, ele mesmo, no papel do ainda jovem Octave, em seu filme “A Regra do Jogo”, diz em cena a frase mais esclarecedora de toda a sua filmografia: “O insuportável na vida é que todo mundo tem razão”. 

4. La Strada, de Federico Fellini.
Sei que seria mais “intelectual” e talvez mais respeitável citar outros filmes de Fellini, como “A Doce Vida”, quem sabe “Amarcord” ou sobretudo “Oito e Meio”, o filme querido de todos os cineastas. Mas “A Estrada da Vida” é um dos filmes que mais vejo até hoje e que me faz chorar francamente a cada vez que o vejo. Caetano Veloso diz, a propósito desse filme, que Fellini consegue o raro feito de ser “ao mesmo tempo sentimental, popular e grande artista”, uma coisa que não acontece nunca. Ou quase nunca. Um filme circense, por suas piruetas plásticas, pelo sentimentalismo dos personagens e pela dramaturgia populista assumida com tanta profundidade e dignidade. Esse céu, de onde Zampanó espera que lhe chegue alguma coisa, é o mesmo que traz à cena o magnífico corvo de “Uccelacci e Uccellini”, de Pier Paolo Pasolini, e a neve de meu “Bye Bye Brasil”.

5. The Godfather (trilogia), de Francis Ford Coppolla.
Comecei a lista com os pequenos e encerro-a com os grandes filmes americanos, um daqueles  que o tornaram o segundo cinema nacional em todo lugar do mundo. Há cineastas que a gente admira e outros que a gente ama. Por exemplo, admiro muito Martin Scorsese, mas amo mesmo é Coppolla, com todos os seus gigantescos defeitos, seus equívocos tsunâmicos. “O Poderoso Chefão” é a melhor aula de história americana que o cinema podia dar desde “Cidadão Kane”, de Orson Welles, e desde os filmes de King Vidor e Elia Kazan. Um poema épico sobre a formação dos Estados Unidos e seus costumes característicos (política, ética, família, amizade, religião, essas coisas), contado com uma grandeza barroca irresistível”.