O Festival Videobrasil já construiu um cineminha só para exibir os filmes dele em looping. A New York Public Library comprou uma cópia de Remanescências, eleito por especialistas internacionais um dos 100 filmes experimentais mais importantes da história do cinema. O Festival de Locarno já fez retrospectiva de sua obra. Caetano Veloso disse que “seus filmes são feitos para o espectador-artista, isto é: fazem do espectador que de fato os vê um artista”. E Décio Pignatari resumiu, à sua maneira: “He’s reel!”.
O trocadilho procede. Carlos Adriano trabalha quase sempre a partir da manipulação (física e digital) de materiais de registro, sejam eles pedaços de filmes muito antigos, fragmentos de pré-cinema, fotos, discos de vinil etc. Seu cinema é não-narrativo, não-ilusionista, não exatamente documental, mas onde a matéria-prima do mundo real é a base de tudo. Ele tem algo de alquimista e um tanto de fetichista, sempre disposto a explorar a materialidade do cinema e das coisas que filma. Em Remanescências, por exemplo, retrabalhou durante 18 minutos uma única sequência de 11 fotogramas – ondas batendo na madeira de um píer – que podem ter sido os primeiros a serem jamais filmados no Brasil (a discussão histórica é polêmica). Para A Voz e o Vazio – A Vez de Vassourinha, Adriano explorou apenas 12 fotos do compositor e a superfície dos velhos discos de onde emana sua voz. Em trabalhos da década de 1990, repaginou letreiros luminosos de São Paulo e criou um filme a partir de rasgos e inscrições no negativo.
Amir Labaki já disse dele: “É um outro cinema, construído pela manipulação de seus materiais essenciais (luz e tempo). Nem narrativos, nem abstratos, são filmes que oscilam entre a admiração pelo tema proposto e o fascínio pelo próprio aparato cinematográfico”. Já Augusto de Campos o definiu assim:
“ele caminhou
da pele da palavra ao cerne da película
anemic cinema
enigma imagen”
Mesmo nos filmes sobre artistas, Adriano passa ao largo da mera informação. Militância, sobre o fotógrafo de lanterna mágica Militão Augusto de Azevedo; O Papa da Pulp, sobre o camaleônico escritor Rubens F. Luchetti; e Um Caffé com Miécio, com o caricaturista e colecionador Miécio Caffé, são ensaios intertextuais, cuja forma se deixa profundamente contaminar pelo tema e o personagem. Entre 2004 e 2006, Adriano criou o média-metragem Porviroscópio a partir de um raro filme doméstico de Monteiro Lobato. O curta Das Ruínas a Rexistência é apresentado como uma “montagem poética sobre fragmentos dos desconhecidos filmes inacabados (1961-1962) de Décio Pignatari”.
A faceta de pesquisador aparece também na forma de livros e estudos. Junto com seu produtor e parceiro Bernardo Vorobow (1946-2009), Adriano organizou o volume Julio Bressane: CinePoética (1995) e escreveu o livro Peter Kubelka: A Essência do Cinema (2002). Na ECA-USP, onde graduou-se em cinema e obteve o título de mestre, desenvolveu tese de doutorado sobre aparelhos pré-cinematográficos, material de arquivo e cinema de vanguarda.
Resultado dessa tese foi também seu primeiro longa, Santos-Dumont Pré-cineasta? , já exibido no Festival do Rio e na Mostra de Tiradentes. Nesse filme, o magnífico achado de uma cena de mutoscópio mostrando Santos-Dumont detona não só uma investigação sobre os primórdios da aviação e do cinema, como uma homenagem póstuma a Bernardo Vorobow, falecido enquanto o filme era finalizado.
Os Faróis de Carlos Adriano apareceram pela primeira vez em 2007, no antigo DocBlog. Para esta nova publicação, ele pediu para incluir a referência saudosa a um sexto “farol”: o seu companheiro Bernardo.
Com ele, a palavra:
“Esta não é uma lista ‘dos’ meus filmes preferidos, mas sim a lista ‘de alguns dos’ meus filmes preferidos. Não posso dizer que sejam filmes que particularmente tenham me influenciado ‘no ofício de fazer documentários’; são (p)referências de uma constelação improvável. Em ordem cronológica …
O Homem da Câmera (União Soviética, 1929), Dziga Vertov.
Epistemologia engajada de um pioneiro meta-cinema em ritmo de utopia político-social. Dziga Vertov (1896-1954) mostra a preparação, a produção, a filmagem, a revelação, a montagem e até a projeção do filme (dentro do seu filme) na tela (dentro da tela) do cinema, configurando um cinema reflexivo e ensaístico. O câmera (Mikhail Kaufman, irmão do diretor) põe em ação o “kino-glaz” (cine-olho) e sai à cata da “vida de improviso”. As imagens flagradas por sua câmera identificam-se com as deflagradas pela montagem do filme a que estamos assistindo, ao mesmo tempo, na linha geral on line. Tomando o cinema como “a decifração comunista da realidade”, Vertov esbanja exuberância formal: vale-se de sobreposições e fusões de imagens, tomadas de câmera em angulações insólitas, metáforas sinestésicas, cortes ousados. Para Annette Michelson, “Vertov mapearia uma mudança de articulação: de uma visão de mundo dialética para a exploração do terreno da própria consciência”, abandonando o didático pelo maiêutico e fazendo “uma teoria do cinema como investigação epistemológica”. O filme do vórtice Vertov foi o sumo paradigma do metacinema estruturalista e anti-ilusionista (não só para o grupo de Godard), pedra de toque da crítica dos anos 60 e 70 que elegeu a desconstrução como tábula rasa e tábua de salvação.
Terra sem Pão (1932), Luis Buñuel.
Um dos documentários mais brutalistas sobre um dos assuntos mais brutais, a fome. Buñuel (1900-1983) foi um dos mais inventivos transgressores de formas na história do cinema. Insólitas provocações visuais que desafiam tabus de toda ordem (igreja, governo, burguesia) fazem dele um iconoclasta inconteste. Autor de contundentes autópsias de uma civilização necrosada, seu inconformismo sem concessões logrou elaborar metáforas contundentes sobre a condição humana. Rodou “Las Hurdes” na região (antes refúgio de bandidos e judeus perseguidos pela inquisição) entre Cáceres e Salamanca, incrustada entre pedras, cabras e miséria. No Café Ambos Mundos, em Zaragoza, Ramón Acín prometeu financiar um filme de Buñuel se ganhasse na loteria. Ao saberem do prêmio-doação do líder, os anarquistas saíram pelas ruas de Huesca gritando: “repartir, repartir…”. Imagens desconcertantes contaminam de desespero o espectador face ao desamparo dos habitantes, arraigados ao solo remoto. O método de produção também era povero, estética da fome: Buñuel montou o filme sem moviola, na mesa da cozinha. Envergonhado, o governo impediu sua difusão internacional. Ainda hoje os habitantes da região amaldiçoam o filme e sofrem estragos com a imagem negativa.
Um Homem e O Cinema (Brasil, 1976), Alberto Cavalcanti.
Literal e alegoricamente, é uma antologia de quase todas as possibilidades do cinema. Cavalcanti (1897-1982) compila e comenta trechos de seus filmes. Ele se vinculou à avant-garde francesa – cenógrafo de Louis Delluc em L’Inondation (1923); assistente de direção e cenógrafo de Marcel L’Herbier em L’Inhumaine e Résurrection (1923) e Feu Mathias Pascal (1924); diretor de En Rade e La P’tite Lilie (1927), e Somente as Horas (1926), a primeira sinfonia de cidades européia – e ao General Post Office da Inglaterra – produziu animações para Norman McLaren (Love on the Wing, 1939) e Len Lye (Rainbow Dance, 1936) e revolucionou o filme institucional e o documentário nos anos 30-40 com técnicas experimentais, como produtor, diretor de som (Night Mail, 1936) e autor de um filme de montagem (Yellow Caesar, 1941). No final dos anos 40 e começo dos 50, foi chamado ao Brasil para criar as bases de uma indústria. Aqui dirigiu Simão, O Caolho (1952), O Canto do Mar e Mulher de Verdade (1954). Deixou ainda um legado decisivo na televisão européia dos anos 60-70. Acabou banido de sua própria terra, para retomar a sina de exilado errante. Publicou um livro fundamental para a arte do documentário: Filme e Realidade, que também é título de um outro antológico filme de montagem (1939-1942).
Disorient Express (Estados Unidos, 1996), Ken Jacobs.
Um deslumbramento rigoroso do cine-artista que opera no registro do found footage (gênero que reprocessa imagens de arquivo). Ken começou a explorar a Paper Print Collection da Biblioteca do Congresso (Washington) com Tom, Tom, The Piper’s Son (1969). Até 1912, uma cópia em papel extraída do negativo do filme era depositada, para efeito de copyright. Fotogramas impressos em papel não se projetam, mas assim o cinema do começo americano foi preservado. E ali permaneceu para ser redescoberto. Disorient Express parte de imagens achadas em A Trip Down Mount Tamalpais (1906), de autoria desconhecida, refotografando uma série de planos e expandindo-a com duplicações e inversões topofílmicas em várias permutações. Jacobs subverte os códigos previsíveis do “cinema estrutural” em favor de um método renovador e revigorador da experiência. Vemos a paisagem transfigurada (cenas de uma viagem de trem pelas montanhas) como só pode ser vista no (e pelo) cinema. Outro filme de Ken, The Georgetown Loop (1996), vale-se da mesma abordagem com outros parâmetros e outra viagem de trem (The Scenic Wonder of Colorado, 1903). A animação dos passageiros do começo do século passado encontra o entusiasmo da aventura da percepção dos espectadores do fim daquele século, expandindo nossa consciência.
Quei Loro Incontri (Itália, 2006), Danièle Huillet e Jean-Marie Straub.
O curador de programação cinematográfica Bernardo Vorobow e eu fomos convidados pelo próprio casal de autores para a primeira sessão deste que acabou sendo a última obra-prima de Straub-Huillet. Não creio que com a morte de Danièle (1936-2006), Jean-Marie (1933) volte a filmar. A cabine para convidados aconteceu em Paris, no começo de abril de 2006, numa sala catacúmbica de um cineclube perto do Arco do Triunfo. Três dias depois, fazíamos uma visita ao apartamento parisiense do casal francês que vivia na Itália desde 1969. O relato destes “encontros com eles” (tradução do título do filme) está em artigo da revista eletrônica Trópico. Jean-Marie e Danièle se conheceram em Paris em novembro de 1954 e militaram por um cinema radical e sem concessões por quase quarenta anos, numa rara combinação de modernidade estética e político engajamento. Cada filme era um manifesto civilizador para o nosso tempo. Método de ética, rigor e essência. Este último, baseado em Cesare Pavese (como Da Nuvem à Resistência, 1978), não é um documentário, mas concentra uma súmula de postura e procedimentos de sua obra intransigente. Tem algo a ver com dois de seus documentários maravilhosos – Cézanne (1989) e Uma Visita ao Louvre (2004), este, por sua vez, foi lançado em duas versões: uma de 48 minutos e outra de 47 minutos.
Farol e âncora no mar da memória
Meu farol apagou. Mas sua luz não se extinguiu. Se um farol é um rotatório projetor de cinema, meu farol permanece em rotação, pois irradiava em múltiplas direções. Meu farol iluminou filmes dos outros, porque fazia programação de cinema. Meu farol iluminou os arquivos, porque arquitetou uma cinemateca. Meu farol iluminou meus filmes, porque produzia meu cinema. Orgulho-me de que foram feitos com ele, para ele, por ele: arqueologia de invenção com restos esquecidos ou desconhecidos da memória cultural brasileira. No último, filme-testamento em quase tudo (de sua respiração colada à câmera em meu peito sob a placa no começo ao “vou andar até ali” na rue Dumont antes do mutoscópio afinal emitir o filme Biograph), nossos espectros acabam tragados no mutoscópio de 1901, fabricado no mesmo ano e na mesma cidade que o filme com Santos Dumont. Campo e contracampo, agora, só no cinema; ou no campo de marte. No fim, um fenômeno da natureza, do acaso, e ao acaso, que, em retroprojeção, por ressonâncias, vira quase um milagre: a refração de estrelas de luz no olhar, antes de partir. Meu farol chama-se Bernardo Vorobow. Ele dirigiu um dos documentários mais deslumbrantes, libertários e inventivos do cinema que eu já vi e ouvi: “Cinema Paulista: Ovo de Codorna” (1974). Meu farol apaga em 2009. Mas sua luz não se extingue.”