Carlos Alberto Prates Correia está sendo homenageado na Mostra do Filme Livre 2013. No ano passado, o colega Daniel Caetano o entrevistou e apurou seus filmes-faróis para a revista Filme Cultura. Incorporo agora esse material ao nosso acervo de Faróis. Os comentários de Prates sobre os filmes têm a verve muito típica desse realizador mineiro, autor de filmes como Cabaré Mineiro e Noites do Sertão, entre outros citados abaixo.
Filme Cultura – Você vê relações entre o seu cinema e os filmes de outros realizadores em atividade?
Prates – Não vejo nem nunca vi relações do meu cinema com algo que alguém mais ande fazendo, mas pode ser que elas existam. Essa pretensão à originalidade, no entanto, já teve que ultrapassar obstáculos: quando terminei o roteiro de Minas-Texas, por exemplo, fui ver um filme de Almodóvar e me deparei na tela com a dublagem de Johnny Guitar para o castelhano, justamente de uma cena que sob forma de paródia eu tinha incluído em meu roteiro. Fiquei constrangido e a substituí. Anos depois, ligo a TV e vejo uma cena de outro filme dele, com a mesma gravação de uma música da trilha de Perdida, que ele certamente não viu. Apesar das coincidências, não me sinto relacionado a Pedro Almodóvar.
FC – Depois de um filme memorialístico como Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais, você tem novos projetos em vista?
Prates – Todos os que realizei são de alguma forma memorialísticos. Veja como surgiu Terra de Grande Beleza, o próximo. Rio, 2003: estava enfermo e ganhei uma biografia do presidente JK, um volume pesado. Cerrando as pálpebras, JK surgia como candidato, o povo o cercava na Praça da Matriz e ele atravessou a rua para abraçar a minha mãe. Montes Claros, anos 50. Eu era adolescente.
Em sua primeira versão, Terra de Grande Beleza seria a história do sentimento que experimentei, isto é, do ciúme que começa naquela praça, se prolonga quando o político arrebata do futuro cineasta sua prima querida e chega ao clímax quando se vê o diamantinense lhe subtraindo sua companheira de militância num partido extremista. No projeto atual, o filme passou a ser a crônica de uma geração que virava a noite no bar discutindo os rumos da revolução brasileira.
O enredo cobre com humor um período de 35 anos do itinerário dessa geração, inclusive o destino daqueles que deram cabo à vida pelo caminho ou preferiram ingressar na guerrilha contra a ditadura militar e tiveram um fim trágico.
Um outro lado do enredo me atrai igualmente: Terra de Grande Belezaé também a memória de um segmento da população de Minas que fazia da mudança para o Rio o grande sonho de sua vida. O material de arquivo a ser inserido corresponde a uma parcela de menor porte da obra ficcional, mas seu uso intermitente deverá auxiliar na ambientação histórica das cenas relacionadas com o Rio de Noel Rosa, a FEB na Itália, a Ipanema nos anos 50, Jânio, Jango, o golpe de 64, os períodos Médici e Fernando Collor.
Como se vê, contrariando meus argumentos anteriores, desta vez o fluxo da memória participa de um jogo com as imagens e as palavras mais comprometido com uma ostensiva ambição cosmopolita, originária do enredo de apelo popular A Mulher Guerreira, que abandonei para dirigir Minas-Texas e uso aqui sob a forma de lembrança. A Mulher Guerreira pretendia ser um filme de ação, no qual destinos individuais se entrelaçavam com os destinos do país. Terra de Grande Beleza toma dele os ingredientes picantes e muita ação, egressos do best-seller tradicional – lindas mulheres, negociatas, intrigas políticas, chantagens e assassinatos. O filme tem como objetivo prender o espectador do primeiro ao último plano sem perder a linha de sua sensibilidade apurada e jamais deixando de lado a visão poética e principalmente a percepção crítica.
Os filmes-faróis de Carlos Alberto Prates Correia
1 – Chicoteada (La Fille au Fouet), de Jean Dréville (1952) – Genival Tourinho (futuro deputado), aos 18, e Maurício Gomes Leite (futuro crítico e cineasta), aos 15, subiam a Rua Camilo Prates para ver Barba Azul, com CécileAubry (impróprio até 18), achando graça da minha petulância quando eu me encontrei com eles, aos 10, perseguindo o mesmo objetivo. Não sabiam que meu tio, representante do juiz de menores na porta dos cinemas, facilitava a minha entrada e a do primo Felisberto em filmes de qualquer impropriedade, menos os proibidos, como Esquina do Pecado. Pelo menos em Montes Claros, havia diferença entre impróprio e proibido. Foi por isso que consegui ver o obscuro Chicoteada, passado nos Alpes suíços, um filme que provavelmente Guimarães Rosa também viu antes de imaginar Diadorim.
2 – A última Vez que Vi Paris, de Richard Brooks (1954) – Eu não sabia o que era amor, não entendia Casablanca, que tanto agradava à minha mãe. Fui estudar num colégio interno, onde, aos 12, vi o Festival da Metro e parece que aprendi – com Scott Fitzgerald, Richard Brooks e, principalmente, Elizabeth Taylor. Mandei carta para ela, que mandou como resposta uma foto lindíssima e dedicatória afetiva, mas lacônica. Considerei logo extinta a possibilidade de qualquer relacionamento. Anos depois,filmei em Perdidauma sequência com Helber Rangel tentando reproduzir o sofrimento de Van Johnson diante da morte de Liz. Não sei se ela entendeu como tal a minha declaração de amor.
3 – Férias de Amor (Picnic), de Joshua Logan (1955) – O dorso nu de William Holden, queimando lixo, subvertia a ordem. Kim Novak descia as escadas do picnic ao som de Moonglow. “Eles estão tomando banho nus no lago”, dizia-se mais tarde a respeito da nova mania de Hollywood. Havia Faulkner no ar, Cinemascope, som estereofônico. Kim Novak me enlouquece, mas não consigo transmitir para o curta-metragem que escrevo sua sensualidade absoluta.
4 – Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos (1963)– Juvenil, saio da sessão especial convencido de que o sertão verdadeiro estava ali, na tela grande do Cine Palladium, sem a falcatrua do cangaço, da jagunçada. Na sala de espera ouço a viúva de Graciliano [Ramos] dizer que a miséria era a maior grandeza nacional. Fico perplexo e concluo que nada mais havia a fazer a partir daquele assunto através daquela linguagem. Apego-me inconscientemente apenas ao desejo de filmar um dia com Maria Ribeiro, a protagonista.
5 – Contos da Lua Vaga, de Kenji Mizoguchi (1953) – Depois do sucesso de Macunaíma, Joaquim Pedro resolve produzir Cidadão Cana para mim, com Grande Otelo no papel inspirado em Adolfo Bloch, construtor de um império jornalístico atormentado por sua estatura muito baixa. Comecei a esboçar o roteiro com ele, mas logo na primeira reunião percebi que a realização cairia fatalmente num viés tropicalista, que não me agradava de todo – e cada um foi para seu lado. O que eu desejava era cruzar racismo com ascensão social citando osContos da Lua Vaga. O que me interessava era contar os sonhos de Poder daquele alfaiate e a busca da sua Lady Wasaka, que precederam a loucura que o dominou.
6 – Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais (1961) – Escrevi algumas críticas sobre o filme, chegando até a explicar sua montagem através do jogo de palitinhos chinês. Tempos depois, eu varava madrugadas com um colega, militante da POLOP, tomando Perventin para estudar Sociologia e fazer prova no dia seguinte. Numa delas, ele me confessou que preferia Os Companheiros[Mario Monicelli] à obra-prima de Alain Resnais, mas notei que ele estava mesmo era se divertindo com a minha alucinação, recebendo em troca por sua avaliação errônea minha afetuosa e superior compreensão. Mais alguns anos, e eu construo a fantasia de que a bárbara tortura a que Beto, o meu colega, foi submetido em Petrópolis, antes da morte, deveu-se não à sua liderança no movimento guerrilheiro, mas à sua inquestionável capacidade de seduzir. A montagem de Castelar e Nelson Dantasé uma ressonância longínqua de Marienbad, mas também um sorriso compreensivo para ele.
7 – A Adolescente, de Luis Buñuel(1960) – De Buñuel só tinha visto Robinson Crusoé na infância e me lembrava pouco, de forma que ficava meio deslocado à mesa do bar quando se falava de surrealismo, mesmo sendo leitor até frequente da revista Positif. Achava curioso o folclore que atribuía a ele o ato de chutar a câmera, antes de rodar o plano, quando seu operador ajustava o enquadramento. A Adolescente me apresentou um diretor que eu não esperava, primeiro porque sua escrita trazia poucas lembranças do surrealismo, depois porque os enquadramentos do filme eram rigorosos e iluminados com primor por Figueroa. Mas o que me atraiu mesmo foi seu cinema sem maniqueísmos, que tentei homenagear em Cabaret Mineiro numa sequência (agora sim) surrealista, em que o personagem de Nelson Dantas assa e devora uma adolescente no espeto.
8 – A Grande Ilusão, de Jean Renoir (1937) – Chego em Montes Claros e me encontro com João Luiz Lafetá, meu primo, no Mangueirinha. Acabo de pagar a dívida de Crioulo Doido. Ele vem de São Paulo, onde dá aulas de Literatura. Eu falo que fiz o pior filme da história do cinema, que ele viu na Cinemateca e gostou. Informo que vou ser produtor executivo daqui pra frente, e ele tem um trabalho danado para me convencer do contrário, elogia algumas cenas, analisa, fala da boa repercussão. Com mais algumas doses vou me reerguendo, aceitando suas ponderações, ganhando ânimo. Ele só faz uma pequena restrição, devido à sinuosidade do meu estilo, mas aí eu já estou forte e digo que meu modelo foi A Grande Ilusão, descarto a crítica e começo naquela mesma noite a escrever o sinuosíssimo roteiro de Perdida.
9 – O Tesouro da Sierra Madre, de John Huston (1948)– Fui rever no Paissandu antes de filmar Minas-Texas. Mais por causa de Tim Holt, que sempre foi meu cowboy favorito. Fiquei surpreso com a exata movimentação da narrativa, destituída de travellings viciosos que apenas enfeitam a cinematografia praticada nos últimos decênios. Eliminei então o maquinista do meu orçamento, retornando à simplicidade de uma câmera sustentada por um bom tripé, como em meus primeiros filmes. Ganhei de bônus a cena com um delirante Walter Houston vendo o ouro em pó se espalhar pela ação do vento, para usar a gosto em Terra de Grande Beleza.
10 – Intriga Internacional (North by Northwest), de Alfred Hitchcock (1959) – Diante dos novos tempos, hesito agora em conservar intocáveis os componentes de um estilo que inclui certo humor, o olhar na direção das mulheres e a presença do trem. Os filmes desprovidos de trem me causam grande enfado, chego a pensar que eles não mereciam ser feitos. Em Crioulo Doido, que reeditei há pouco, ocorria essa lacuna. A personagem era filha de um ferroviário, mas não havia a imagem do trem porque a linha férrea fora desativada em Sabará, a locação. Aproveitei a oportunidade e na trilha sonora usei com desenvoltura o inolvidável ruído de uma locomotiva chegando à estação. O filme virou outra coisa.