Ana Maria Magalhães

Publicado originalmente em novembro de 2011

Fosse como índia de pouca roupa, gatinha urbana ou diva carnavalesca, Ana Maria Magalhães começou a povoar nossa imaginação na época do Cinema Novo, atuando em filmes de Nelson Pereira dos Santos, Gustavo Dahl (com os quais foi casada), Cacá Diegues, Leon Hirszman e Luiz Carlos Lacerda, entre outros. Já então havia trabalhado no Grupo Oficina e militado no movimento estudantil. Seguiu-se uma carreira fértil no cinema e na TV, que tornaram seu rosto um dos mais populares do Brasil.

Aos poucos, a musa foi se revelando também uma ambiciosa autora de filmes, quase todos ligados a ideias de modernidade na cultura brasileira. Aí se incluem curtas como Assaltaram a Gramática (perfil performático de quatro poetas), Já que Ninguém me Tira pra Dançar (sobre Leila Diniz), Spray Jet (pintura urbana) e Mulheres de Cinema. Uma dessas mulheres de cinema inspiraram seu primeiro longa-metragem, Lara, adaptação livre de episódios da vida de Odete Lara. Esta semana, Ana Maria está lançando Reidy, a Construção da Utopia, seu segundo longa, um perfil não biográfico do seu tio, Affonso Eduardo Reidy, responsável por algumas obras-primas da arquitetura e do urbanismo no Rio de Janeiro (leia resenha).

Seu interesse pelas questões de identidade cultural do país prossegue com um novo trabalho em andamento. A série O Brasil de Darcy, em cinco episódios, vai revisitar na TV Brasil o legado de Darcy Ribeiro. Outro projeto em seu portifólio de desejos é revisitar, 20 anos depois, os meninosque protagonizaram seu documentário Mangueira do Amanhã, de 1992. Recentemente, Manoel de Oliveira convenceu-a a aparecer novamente diante das câmeras num dos papéis centrais de O Estranho Caso de Angélica, ainda inédito comercialmente no Brasil.

Instada a relacionar seus filmes-faróis, Ana não se conteve no limite de 10 títulos. O remédio foi pedir que ela indicasse seis como extras. Merecem atenção também a qualidade e pertinência de seus comentários.

  1. Clamor do Sexo (Splendor in the Grass), de Elia Kazan

A descoberta sexual e a passagem da adolescência são esplendidamente exploradas por Kazan. As imagens do verão se contrapõem à violência dos conflitos entre pais e filhos às vésperas da Depressão. O filme deságua no perdão aos pais. No ótimo e lindo elenco, Natalie Wood e Warren Beatty. E ainda Barbara Loden, magnífica na pele da absurda garota que barbariza a sociedade puritana e expõe a hipocrisia do sistema que investe na riqueza como substituta da sexualidade.

  • Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha

Tinha quatorze anos quando assisti, e esse foi o primeiro filme brasileiro que me impressionou fortemente. Acostumada a ver o cangaço em filmes sanguinolentos, a dramaticidade, a música, as interpretações, tudo me conduziu ao Brasil profundo que eu pressentia nas estórias que meu pai contava sobre o cangaço em Serra Talhada, terra de Lampião e da nossa família. As interpretações também surpreendem em um tempo em que não se via algo tão visceral na cena cinematográfica brasileira.

  • O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel

Assisti numa sessão do Festival Internacional do Filme em 1965. Buñuel estabelece convenções, das quais não ousamos duvidar, para criar uma situação surreal em que expõe a miserabilidade da condição humana sem jamais perder o humor. Com ele descobri o surrealismo e me apaixonei definitivamente pelo seu cinema. Dediquei o curta-metragem O Bebê a Luis Buñuel.

  • Viver a Vida (Vivre sa Vie), de Jean-Luc Godard

Entre tantos filmes de Godard que vi na adolescência este foi o que mais me tocou. Tive a impressão de que ele falava filosoficamente sobre as mulheres para as mulheres. Revi o filme ultimamente e continua moderno. Com elementos mínimos ele cria uma atmosfera em que forma e conteúdo se entrelaçam com a mesma afinação.

  • A Marca da Maldade (Touch of Evil), de Orson Welles

Gosto de todos os filmes de Welles, sem exceção. Kane, que vi e revi no Cine Bijou, me deslumbrou. Sem falar em F for Fake, que discute a arte com veracidade, apesar do título. Porém, somente um mestre do cinema poderia conceber aquele plano inicial de A Marca da Maldade. A trama intrigante e elaborada desenvolve uma tensão que não cessa. E seu tema discute o embate entre a lei e a justiça. Algo cada vez mais atual e eterno na sociedade dos homens.

  • M, O Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang

A maldade aqui é ambiguamente expressa na tensão entre o terror social do nazismo ascendente e o psiquismo do assassino. Em seu primeiro filme sonoro, Lang explora as potencialidades da montagem associada ao som para criar a atmosfera de suspense. A violência é apenas sugerida pelos sons, sombras, enquadramentos e cortes. Quando os mafiosos locais pegam o criminoso para matá-lo, Lang lhe dá a chance de expor a tragédia psicológica de seu terrível instinto. “It’s far beyond my control”, é o que diz, em outras palavras, a personagem interpretada por Peter Lorre no monólogo final.

  • A Paixão de Joana D’Arc, de Carl T. Dreyer

O filme de Dreyer é um dos mais belos da história do cinema. A iluminação e os enquadramentos dão um tom pictórico às cenas e suportam o misticismo e o sofrimento da santa guerreira magistralmente interpretada por Falconetti. Sem recursos como som e maquiagem, a atriz expressa o martírio com a intensidade de sua interiorização. O gestual mínimo é hieraticamente intimista. O filme também tem em seu elenco ninguém menos que o teatrólogo Antonin Artaud.

  • Ouro e Maldição (Greed), de Erich Von Stroheim

Erich Von Stroheim se utiliza de um conto para criar a obra-prima do cinema mudo. Como Kafka tem sua premonição em Amerika sem jamais ter ido aos Estados Unidos, Stroheim desce aos fundamentos da sociedade que enfoca e realiza um filme tão à frente do seu tempo que continua atual. Destaco a cena do casamento em que um enterro ao mesmo tempo passa ao fundo na rua. E Zasu Pitts cobrindo o seu corpo miserável com moedas de ouro, uma das quais ela morde em êxtase.

  • Vagas Estrelas da Ursa Maior (Vaghe Stelle dell’Orsa), de Luchino Visconti

Talvez seja o filme mais poético de Visconti, como o próprio título extraído de um poema de Leopardi. A beleza da dupla Claudia Cardinale e Jean Sorel contrasta com o fardo emocional do passado nostalgicamente cultivado no presente. Visconti cria uma atmosfera impregnada de trágico nessa estória de retorno à casa paterna, em que contrapõe a família ao radicalismo existencial.

  1. A Noite, de Michelangelo Antonioni

O “maestro”, como o chamava Glauber, foi o mais moderno de todos no sentido de antecipar temas da existência humana ao nível coletivo ou individual. Antonioni teve a capacidade de fazer com maestria a passagem do neorrealismo à contemporaneidade. Em A Noite não há um único plano que não seja um acontecimento. Arquiteta a estrutura interior do romance em imagens e diálogos. A partir da simples observação de uma situação compõe uma estória. Nela empreende a análise dos sentimentos, no caso angústia e amor, em que exprime a experiência humana com beleza e intensidade. A cidade é personagem sempre presente em seu rico universo. Nos créditos enquadra Milão. Mais adiante haverá o contraponto entre a indústria e o pensamento, encarnado por Mastroianni no papel do escritor. Usa o tempo, assim como a cor ou seus contrastes de preto, branco e cinza, em função da narrativa e da poética. A festa é o elemento central deste filme em que enquadra com sutileza e ironia a burguesia milanesa. O filme, com Monica Vitti dizendo que tem vinte e dois anos e muitos meses, marcou a minha formação. Quando Glauber me apresentou a Antonioni no bar do Hotel Excelsior, em Veneza, pensei de imediato em A Noite, que povoou meus sonhos adolescentes. Maestro, que saudades!

Agora, os extras:

  1. Assim Caminha a Humanidade (Giant), de George Stevens

Tradicionalmente são as mães que induzem os filhos à cinefilia. A minha apresentou-me o épico de Stevens. Sua grandeza reside na dramática saga da decadência de uma família de fazendeiros que perde seu poder e riqueza para um novo rico do petróleo. O progresso é ilusório. Produz avanços nos costumes, mas conserva o racismo texano contra os mexicanos. No elenco de gigantes, a jovem Liz Taylor compõe o envelhecimento de sua personagem com muito talento e James Dean, em sua última atuação, evolui soberbamente da rebeldia ao desespero.

  1. Imitação da Vida, de Douglas Sirk

Sirk se despede da América com um melodrama duramente comovente ao cruzar maternidade e discriminação racial. O roteiro espelha vidas inversamente, a partir da bela amizade entre duas mulheres, uma branca e outra negra, que criam sozinhas suas filhas. Uma se apaixona pelo namorado da mãe que vive em função do sucesso profissional, enquanto a outra rejeita a mãe dedicada por ser negra. O choque temático é que o drama social e racial é abordado no âmbito da vida privada.

  1. Um Só Pecado (La Peau Douce), de François Truffaut

Acompanhei Truffaut desde Os Incompreendidos, sua obra-prima. Mas La Peau Douce é o meu predileto por dois motivos: a presença de Françoise Dorléac e a liberdade de Truffaut. Aprendi com ele que não se deve temer o fio da navalha na criação. A cena final poderia resvalar para o ridículo, mas é trabalhada com tanta veracidade que comove.

  1. A Vênus Loura, de Josef Von Sternberg

As qualidades técnicas e artísticas na construção da linguagem cinematográfica de Sternberg vão muito além da descoberta de La Dietrich em Berlim e sua parceria com a atriz que o notabilizou. Nesse filme, mais do que em qualquer outro, o poder feminino é sugerido nos seus opostos. À parte o especial entendimento da alma feminina revelado nas imagens da cantora de cabaré fabulosamente caracterizada de gorila ou vestida de terno branco, a composição dos quadros e o jogo de luzes e sombras, suas marcas estéticas, atingem o ápice.

  1. A Caixa de Pandora, de Georg W. Pabst

Descobri o grande Pabst por causa de um corte de cabelo. Dahl e Saraceni simultaneamente me disseram que eu estava parecida com Louise Brooks. Um dia fui conferir num cinema em Paris. Trata-se de um dos gênios da interpretação. Sem modismos, estava adiante do seu tempo. Brooks fez a transição do cinema mudo para o sonoro em A Caixa de Pandora. Ali interpretou como se o cinema já fosse falado. Não deve ter sido compreendida pelos seus contemporâneos.

  1. A Doutrina do Choque, de Michael Winterbottom

Realizado por Michael Winterbottom sobre o livro de Naomi Klein, é um dos documentários mais importantes da atualidade. Sobre imagens de arquivo raras e excepcionais, o filme, que tem como tema o controle das populações por líderes que as manipulam após choques coletivos, é tão bem estruturado, assustador e vibrante que emociona mesmo sendo bastante falado.