Ana Maria Magalhães

Publicado originalmente em novembro de 2011

Foto de César Moraes

Cineasta, atriz, produtora e roteirista, Ana Maria Magalhães nasceu no Rio de Janeiro. Estudou no Conservatório Nacional de Teatro, mas logo o cinema se torna a sua grande vocação participando ativamente do movimento Cinema Novo, que revolucionou a arte cinematográfica nacional, dirigida pelos principais realizadores daquele momento, como Glauber Rocha (A Idade da Terra, 1980), Gustavo Dahl (Uirá, um Índio em busca de Deus, 1973) e Paulo César Saraceni (Anchieta, José do Brasil, 1979). Num breve período, ela participou de Todas as Mulheres do Mundo (1966), de Domingos Oliveira, Garota de Ipanema (1967), de Leon Hirzman e O Diabo Mora no Sangue (1968), de Cecil Thiré. Mas é na parceria com Nelson Pereira dos Santos um dos seus grandes destaques como atriz nas obras Quem é Beta? (1973), Azyllo Muito Louco (1970) e Como Era Gostoso o Meu Francês (1971).

Em novembro de 2011, a cineasta concedeu uma entrevista ao crítico Carlos Alberto Mattos para seu projeto Faróis do Cinema em versão online, com trecho aqui reproduzido: “Fosse como índia de pouca roupa, gatinha urbana ou diva carnavalesca, Ana Maria Magalhães começou a povoar nossa imaginação na época do Cinema Novo, atuando em filmes de Nelson Pereira dos Santos, Gustavo Dahl (com os quais foi casada), Cacá Diegues, Leon Hirszman e Luiz Carlos Lacerda, entre outros. Já então havia trabalhado no Grupo Oficina e militado no movimento estudantil. Seguiu-se uma carreira fértil no cinema e na TV, que tornaram seu rosto um dos mais populares do Brasil.

Foto de Mustapha Barat

Aos poucos, a musa foi se revelando também uma ambiciosa autora de filmes, quase todos ligados a ideias de modernidade na cultura brasileira. Aí se incluem curtas como Assaltaram a Gramática (perfil performático de quatro poetas), Já que Ninguém me Tira pra Dançar (sobre Leila Diniz), Spray Jet (pintura urbana) e Mulheres de Cinema. Uma dessas mulheres de cinema inspiraram seu primeiro longa-metragem, Lara, adaptação livre de episódios da vida de Odete Lara”.

A partir dos anos 80, ela passa a se dedicar integralmente a realização cinematográfica. Mas nos anos 2000, o cineasta português Manoel de Oliveira convenceu Ana Maria a voltar a atuar no longa-metragem O Estranho Caso de Angélica (2010) e cinco anos mais tarde também participa de Cordilheiras no Mar, a Fúria do Fogo Bárbaro, de Geneton Moraes Neto. Entre seus créditos recentes como diretora estão o documentário Reidy, a construção da utopia (2009), sobre o arquiteto e urbanista Affonso Eduardo Reidy; uma minissérie em cinco episódios intitulada O Brasil de Darcy Ribeiro (2014); e revisitou personagens do curta Mangueira do Amanhã (1992) em Mangueira em 2 Tempos (2019), em exibição nos Faróis do Cinema.

Filmografia selecionada

Já Que Ninguém Me Tira pra Dançar (2021)
Mangueira em 2 Tempos (2019)
Reidy, a construção da utopia (2009)
Lara (2002)
Erotique (episódio “Final Call”) (1994)
Mulheres de Cinema (1977)

//Filmes Faróis

Clamor do Sexo (Splendor in the Grass, 1961), de Elia Kazan

A descoberta sexual e a passagem da adolescência são esplendidamente exploradas por Kazan. As imagens do verão se contrapõem à violência dos conflitos entre pais e filhos às vésperas da Depressão. O filme deságua no perdão aos pais. No ótimo e lindo elenco, Natalie Wood e Warren Beatty. E ainda Barbara Loden, magnífica na pele da absurda garota que barbariza a sociedade puritana e expõe a hipocrisia do sistema que investe na riqueza como substituta da sexualidade.

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha

Tinha quatorze anos quando assisti, e esse foi o primeiro filme brasileiro que me impressionou fortemente. Acostumada a ver o cangaço em filmes sanguinolentos, a dramaticidade, a música, as interpretações, tudo me conduziu ao Brasil profundo que eu pressentia nas estórias que meu pai contava sobre o cangaço em Serra Talhada, terra de Lampião e da nossa família. As interpretações também surpreendem em um tempo em que não se via algo tão visceral na cena cinematográfica brasileira.

O Anjo Exterminador (El Ángel Exterminador, 1962), de Luis Buñuel

Assisti numa sessão do Festival Internacional do Filme em 1965. Buñuel estabelece convenções, das quais não ousamos duvidar, para criar uma situação surreal em que expõe a miserabilidade da condição humana sem jamais perder o humor. Com ele descobri o surrealismo e me apaixonei definitivamente pelo seu cinema. Dediquei o curta-metragem O Bebê a Luis Buñuel.

Viver a Vida (Vivre sa Vie, 1962), de Jean-Luc Godard

Entre tantos filmes de Godard que vi na adolescência este foi o que mais me tocou. Tive a impressão de que ele falava filosoficamente sobre as mulheres para as mulheres. Revi o filme ultimamente e continua moderno. Com elementos mínimos ele cria uma atmosfera em que forma e conteúdo se entrelaçam com a mesma afinação.

A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), de Orson Welles

Gosto de todos os filmes de Welles, sem exceção. Kane, que vi e revi no Cine Bijou, me deslumbrou. Sem falar em F for Fake, que discute a arte com veracidade, apesar do título. Porém, somente um mestre do cinema poderia conceber aquele plano inicial de A Marca da Maldade. A trama intrigante e elaborada desenvolve uma tensão que não cessa. E seu tema discute o embate entre a lei e a justiça. Algo cada vez mais atual e eterno na sociedade dos homens.

M, O Vampiro de Düsseldorf (M – Eine Stadt sucht einen Mörder, 1931), de Fritz Lang

A maldade aqui é ambiguamente expressa na tensão entre o terror social do nazismo ascendente e o psiquismo do assassino. Em seu primeiro filme sonoro, Lang explora as potencialidades da montagem associada ao som para criar a atmosfera de suspense. A violência é apenas sugerida pelos sons, sombras, enquadramentos e cortes. Quando os mafiosos locais pegam o criminoso para matá-lo, Lang lhe dá a chance de expor a tragédia psicológica de seu terrível instinto. “It’s far beyond my control”, é o que diz, em outras palavras, a personagem interpretada por Peter Lorre no monólogo final.

A Paixão de Joana D’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, 1928), de Carl T. Dreyer

O filme de Dreyer é um dos mais belos da história do cinema. A iluminação e os enquadramentos dão um tom pictórico às cenas e suportam o misticismo e o sofrimento da santa guerreira magistralmente interpretada por Falconetti. Sem recursos como som e maquiagem, a atriz expressa o martírio com a intensidade de sua interiorização. O gestual mínimo é hieraticamente intimista. O filme também tem em seu elenco ninguém menos que o teatrólogo Antonin Artaud.

Ouro e Maldição (Greed, 1924), de Erich von Stroheim

Erich von Stroheim se utiliza de um conto para criar a obra-prima do cinema mudo. Como Kafka tem sua premonição em Amerika sem jamais ter ido aos Estados Unidos, Stroheim desce aos fundamentos da sociedade que enfoca e realiza um filme tão à frente do seu tempo que continua atual. Destaco a cena do casamento em que um enterro ao mesmo tempo passa ao fundo na rua. E Zasu Pitts cobrindo o seu corpo miserável com moedas de ouro, uma das quais ela morde em êxtase.

Vagas Estrelas da Ursa (Vaghe Stelle dell’Orsa, 1965), de Luchino Visconti

Talvez seja o filme mais poético de Visconti, como o próprio título extraído de um poema de Leopardi. A beleza da dupla Claudia Cardinale e Jean Sorel contrasta com o fardo emocional do passado nostalgicamente cultivado no presente. Visconti cria uma atmosfera impregnada de trágico nessa estória de retorno à casa paterna, em que contrapõe a família ao radicalismo existencial.

A Noite (La Notte, 1961), de Michelangelo Antonioni

O “maestro”, como o chamava Glauber, foi o mais moderno de todos no sentido de antecipar temas da existência humana ao nível coletivo ou individual. Antonioni teve a capacidade de fazer com maestria a passagem do neorrealismo à contemporaneidade. Em A Noite não há um único plano que não seja um acontecimento. Arquiteta a estrutura interior do romance em imagens e diálogos. A partir da simples observação de uma situação compõe uma estória. Nela empreende a análise dos sentimentos, no caso angústia e amor, em que exprime a experiência humana com beleza e intensidade. A cidade é personagem sempre presente em seu rico universo. Nos créditos enquadra Milão. Mais adiante haverá o contraponto entre a indústria e o pensamento, encarnado por Mastroianni no papel do escritor. Usa o tempo, assim como a cor ou seus contrastes de preto, branco e cinza, em função da narrativa e da poética. A festa é o elemento central deste filme em que enquadra com sutileza e ironia a burguesia milanesa. O filme, com Monica Vitti dizendo que tem vinte e dois anos e muitos meses, marcou a minha formação. Quando Glauber me apresentou a Antonioni no bar do Hotel Excelsior, em Veneza, pensei de imediato em A Noite, que povoou meus sonhos adolescentes. Maestro, que saudades!

Site: anamariamagalhaes.com.br