Beth Formaggini

Conversa com a cineasta no dia 31 de agosto

Diretora, roteirista e produtora nascida em Montes Claros (MG). Formada em História pela Universidade Federal Fluminense, especializou-se em documentário e pesquisa audiovisual na Universidade de Roma (Itália). Em 1987, dirigiu o curta-metragem Touche Pás À Mon Pote, em parceria com Flávio Ferreira, Henri Gervaiseau e Solange Padilha. Em 1995, realizou o documentário Pontos de Vista, exibido pela TV Manchete. Recebeu o prêmio de melhor filme, segundo o júri popular do Festival do Rio 2007, pelo longa-metragem Memória para uso diário (2007), em que documenta o trabalho do grupo Tortura Nunca Mais RJ. Em 2010, seu curta Angeli 24h, venceu os prêmios de melhor documentário na Jornada da Bahia 2011 e melhor direção de curta-metragem no Recine 2011. Trabalhou na produção e pesquisa de documentários de diversos cineastas, em especial dos filmes de Eduardo Coutinho, entre eles Babilônia 2000 (2000), Edifício Master (2001) e Peões (2003). Produziu ainda outros filmes, como Bendito Fruto (2004), de Sérgio Goldenberg, Em Trânsito (2005), de Henri Gervaiseau, Novela na Santa Casa (2006), de Cathie Levy e Paixão e Virtude (2014), de Ricardo Miranda. Organizou retrospectivas sobre as obras de Walter Lima Junior e Joaquim Pedro de Andrade, além das mostras VIDA – parte da Eco 92 – e Cinema na TV – parte do festival É Tudo Verdade. Entre 2005 e 2006, foi presidente da Associação Brasileira de Documentaristas do Rio de Janeiro.

Beth Formaggini é uma pesquisadora do documentário brasileiro, já tendo realizado diversas curadorias sobre o tema, resgatando a memória de programas feitos para o Globo Repórter, nos anos 1970. Foi também coordenadora de pesquisa em filmes como Martírio (2016), de Vincent Carelli; Othelo, o Grande (2018), de Lucas H. Rossi; e O Mistério do Samba (2007), de Lula Buarque e Carolina Jabor, entre outros trabalhos na área. A sua relação próxima com Coutinho rendeu o filme Coutinho.doc – Apartamento 608 (2008) em que acompanha o processo de criação do realizador desde a pesquisa até o fim das filmagens de Edifício Master.

Filmografia selecionada
 

Pastor Claudio (2017)
Xingu Cariri Caruaru Carioca (2015)
Coutinho.doc – Apto. 608 (2008)
Memória para uso diário (2007)

//Filmes Faróis

Cabra Marcado Para Morrer (1985), de Eduardo Coutinho

Eduardo Coutinho é um imenso farol iluminando o meu caminho e o documentário brasileiro. Tive o privilégio de ter colaborado com ele em alguns dos seus filmes e de aprender, principalmente, como me relacionar com os personagens, sua obsessão. Eles construíam junto com Coutinho uma narrativa sobre si mesmos numa coautoria. Como ele mesmo dizia, era uma “negociação de desejos”. Cabra Marcado Para Morrer, a história de uma família e a saga de uma equipe de cinema contam a história do nosso país a partir de um núcleo familiar e dos camponeses de Galileia. Acompanhamos neste documentário os modos de filmar do cinema brasileiro, desde o cinema militante do CPC até o documentário moderno dos anos 80, onde o processo de filmagem traz mais perguntas do que respostas. As certezas de 64 se multiplicam em várias versões em 84: a do diretor e a dos personagens. Coutinho filmava o outro para entender quem ele era.

Martírio (2016), de Vincent Carelli, Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho

Martírio, sobre a saga dos Guarani Kaiowá, é o segundo filme da trilogia de Vincent Carelli, criador do projeto Vídeo nas Aldeias. O primeiro foi Corumbiara, depois Martírio e, finalmente, Adeus, Capitão. Desde que conheci Vincent há 40 anos, ele grita contra o genocídio dos povos indígenas usando o audiovisual como ferramenta de luta contra o apagamento da memória, a expropriação dos seus territórios, a violência dos brancos e do agronegócio, e a indiferença dos governos. Os realizadores indígenas formados pelo projeto já tem uma filmografia sólida e única que podemos assistir no  http://www.videonasaldeias.org.br. Tive a honra de ter colaborado em alguns trabalhos e na pesquisa de Martírio – e de ter como amigo esse cara que eu admiro tanto.

Branco Sai, Preto Fica (2014), de Adirley Queirós

‘Da nossa memória fabulamos nós mesmos.’ Já disse tudo, não preciso falar mais nada sobre Adirley Queirós, diretor da Ceilândia, que expõe a violência do Estado brasileiro, o racismo e a exclusão social com uma potência e uma liberdade formal que, literalmente, explodem Brasília com uma bomba cultural.

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha

Quando assisti a este filme na adolescência foi como se um raio tivesse atravessado a minha cabeça. Eu já tinha a cabeça feita nos cineclubes pelos filmes do neorrealismo italiano, da Nouvelle Vague e pelos filmes brasileiros que me moviam, como Vidas Secas e Rio Zona Norte (N.R.: ambos dirigidos por Nelson Pereira dos Santos). Mas a radicalidade na criação, a câmera na mão, os jump cuts, a violência, o messianismo, Villa Lobos e Corisco foram uma avalanche para os sentidos e que traz consequências até hoje. Deus e o Diabo segue atual neste país extremamente violento que emerge do filme e que exige a busca de uma estética revolucionária.

Cabaret Mineiro (1980), de Carlos Alberto Prates Correia

Conheci Prates em Montes Claros, onde nascemos. Ele morou uma temporada por lá depois de maduro e eu estava visitando minha avó. Foram noites maravilhosas na sua casa, ouvindo sua coleção de LPs. Ele era um grande conhecedor de uma MPB só sua. Eu já era fã de seus filmes que me transportavam para o universo roseano do sertão mineiro, trazendo lembranças da infância dele, que nasceu muito antes de mim, mas que, misteriosamente, eu também compartilhava. Humor e erotismo, ácida crítica social, trilhas sonoras e direção de atores excepcionais, além de humanismo e liberdade de invenção de um cinema só seu, mas universal.

Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci

Tonacci veio ao mundo pra desorganizar a forma de fazer filmes e criar sua linguagem singular: Olho por Olho, Blablablá, Bang Bang, Já Visto, Jamais Visto, Serras da Desordem, documentário e ficção, tempos que se alternam, liberdade estética entre o apuro e a estética da fome, personagens reais que representam as suas próprias histórias, experimentação e independência. Foi um libertário, um nowhere man numa nowhere land, como Carapirú, seu personagem Avá Guajá que, como muitos indígenas, conviveu com a extrema violência. Viu a sua terra ser invadida por fazendeiros e madeireiros, e o seu povo massacrado. Se escondeu durante 10 anos percorrendo 2000 quilômetros para fugir desse trauma até encontrar uma família que o acolhesse. Toda essa história é revivida no filme pelas mesmas pessoas da vida real. Finalmente através da Funai volta para o seu povo ou o que restou dele. Carapirú já não era mais o mesmo e nem os Avá Guajá. Triste Brasil.