Publicado originalmente em maio de 2011
Joel Pizzini nasceu no Rio mas viveu dos seis meses aos 15 anos no Mato Grosso antes que o estado se dividisse em dois. O Marechal Rondon, a atriz Glauce Rocha e o poeta Manoel de Barros nasceram lá. Todos os três já foram objetos de filmes de Pizzini. Agora ele finaliza Olho Nu, um trabalho sobre outro nativo que carrega o estado no nome artístico: Ney Matogrosso, que já havia atuado para Joel no curta Caramujo-Flor, transmutação da poesia de Manoel de Barros. No longa 500 Almas, foi a vez dos índios guatós entrarem para a crônica matogrossense do diretor.
Recentemente Joel habitou com freqüência o planeta Glauber-Sganzerla. Enquanto foi casado com Paloma Rocha, filha mais velha de Glauber e Helena Ignez, formou com ela uma parceria na criação de filmes e na restauração e reedição em DVD das obras de Glauber. Depois do Transe, Anabazys e Milagrez foramdocs nascidos dessa experiência de retornar em profundidade à obra de Glauber. Retrato da Terra, também da dupla, enfocou a obra de Glauber a partir da chamada Trilogia da Terra. Até Dona Lúcia Rocha mereceu o seu quinhão no inusitado doc Abry, instantâneo da mãe-coragem quando paciente de uma cirurgia cardíaca. Foi Pizzini também o curador da Ocupação Sganzerla, evento do Itaúcultural no ano passado, e que vai render o longa Mr. Sganzerla. De Helena Ignez ele realizou umperfil poético-experimental, Helena Zero, numa linha próxima à do magnífico ensaio Glauces – Estudo de um Rosto, que montou a partir de cenas de filmes com Glauce Rocha.
Quem vê a série Retratos Brasileiros do Canal Brasil se surpreende com o diferencial de qualidade dos programas assinados por Joel Pizzini. Em Um Homem Só, por exemplo, o reservadíssimo Leonardo Vilar aceitou entreabrir para ele a intimidade de seu apartamento e de sua vida. De Paulo José, Joel soube extrair toda a verve em Um Auto-retrato Brasileiro. Por sua vez, O Evangelho Segundo Jece Valadão enfocava o contraste entre o “cafajeste” de ontem e o pastor religioso de ainda há pouco.
Curiosamente, Othon Bastos não aprovou a versão do seu “retrato” preparada por Pizzini. Em compensação, Mário Peixoto confiou nele para uma missão sublime: recontar as filmagens de Limite numa obra de ficção. Joel sonha com esse projeto há uns 20 anos. Vai se chamar Mundéu – A Invenção de Limite. Antes disso, porém, a usina Pizzini já produziu o curta A Morte do Pai, sobre a passagem de Roberto Rossellini do cinema para a TV.
Depois de se exercitar em instalações, Joel prepara agora sua primeira investida nos palcos. Em São Paulo, ensaia o espetáculo de teatro-dança Luares, juntamente com a dançarina-performer Emilie Sugai.
Os faróis de Joel foram publicados originalmente no DocBlog, em 2007. Veja abaixo as suas cinco (na verdade, sete) escolhas e as “linhas tortas” que enviou sobre cada uma delas:
Ritmos de uma Cidade, de Arne Sucksdorff – uma descoberta quando me tornei amigo de Arne e comecei a desenvolver nos anos noventa um projeto de documentário (abortado com a extinção da Embrafilme) sobre o cineasta sueco. Um retrato lírico de Estocolmo, onde o ritmo guia um cotidiano imaginado.
Di-Glauber – a dessacralização, a narração vibrante, meio turfe, suíngue & futebol, encara a morte com um registro atrevidamente amoroso. Através de Di, uma celebração de outro morto-vivo: Rossellini. Lance de craque.
Limite, de Mário Peixoto, empatado com Arraial do Cabo, de Paulo César Saraceni e Mário Carneiro – fiquei desconcertado na primeira visão de Limite, com seu estado de suspensão poética. Não era um filme sobre poesia, mas sob poesia. Senti-me encorajou a fazer cinema. Além disso, fiquei fascinado pela história por trás do filme; Em Arraial do Cabo, destaco a trilha ousada, a música industrial no filme seminal do Cinema Novo, antecipando o uso do ruído integrado à banda sonora. O filme não se rende ao tema, não teme enquadrar, compor, e aponta os paradoxos do desenvolvimento. Contraponto a Aruanda, na tradição de Limite.
Verdades e Mentiras, de Orson Welles – a meta-montagem, o autor como ator de sua reflexão sobre os limites, segredos e ilusões da realidade da imagem. A prova dos nove de que “é tudo verdade” (de verdade).
O Poeta do Castelo, de Joaquim Pedro de Andrade, empatado com Mato Eles?, de Sérgio Bianchi – no primeiro, a espontaneidade provocada, a decupagem do cotidiano criativo do poeta. “Pasárgada” é um lugar que despista o desdobramento naturalista que a locução, neste tom, naturalmente sugere. Um docomentário que vai para lugar-nenhum, ou melhor, para o reino da poesia; quanto a Mato Eles?, fiquei impressionado quando vi o filme na Cinemateca de Curitiba, em 1983, quando ainda não tinha me decidido pelo cinema. Um filme quase cínico, que destoava de tudo o que havia visto do gênero. Uma nota dissonante que recusava as regras dos documentários bem intencionados, tomando uma posição, mesmo que um tanto “irresponsável”.