Patrícia Niedermeier

Conversa com a cineasta no dia 06 de setembro

Atriz, bailarina, diretora e performer. Patrícia Niedermeier nasceu no Rio de Janeiro. Graduada em dança na faculdade Angel Vianna. Integrou as companhias de Dança Márcia Rubin e Frederico Paredes, e integra a Cia Atores e Bailarinos do Rio de Janeiro, dirigida por Regina Miranda, desde 2001, pela qual participou de diversos festivais internacionais e nacionais.
Trabalhou com diversos diretores de cinema e teatro como Antônio Abujamra, Rubens Corrêa, Gerald Thomas, Jefferson Miranda e Antônio Carvalho, dentre outros.

Dirigiu e atuou, junto com Cavi Borges, nos filmes Salto no Vazio (2019), O Cinema é Minha Vida (2021) e Reviver (2019), que ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival Guarnicê de Cinema-MA. Atuou nos seguintes longas: Um Filme Francês (2015) e Fado Tropical (2020), de Cavi Borges; Orlando (2012), de Alexandre Rudah; Estamos Vivos (2016), de Filipe Codeço; e Guerra do Paraguay (2017), Dois Casamentos (2014) e  Os Príncipes (2018), todos com direção de Luiz Rosemberg Filho, tendo recebido o prêmio de melhor atriz no Cine PE 2018. Atuou também na minissérie Giga (2021) e no longa Espumas ao Vento (2024), ambos de Taciano Valério.

Salto no Vazio, em exibição nos Faróis do Cinema, é um longa-metragem experimental que embaralha as linhas entre ficção e documentário ao combinar cinema, dança e fotografia. Revela também o interesse da realizadora em obras que vão de Maya Deren até Jonas Mekas.

Em 2023, a cineasta voltou a direção, novamente com Cavi Borges, no longa
Não Sei Quantas  Almas Tenho (2023), que promove uma incursão no cinema fantástico entre citações literárias e o amor eterno dos vampiros; e no documentário Mulheres em Auschwitz – Escritas de Resistência (2023), em codireção com Regina Miranda, em que o trágico episódio do Holocausto é revisitado de modo íntimo e teatral através do ponto de vista de uma mulher refletindo sobre sua passagem pelo campo de extermínio e, assim, sua própria vida e existência. O roteiro é baseado em textos e objetos de mulheres que viveram os horrores da guerra. O seu próximo projeto como diretora já está finalizado e deve estrear em breve: Ensaios sobre Yves (2024), que parte da obra de Yves Klein para fundir experimentações cênicas.

Filmografia selecionada

Ensaios sobre Yves (2024)
Não sei Quantas Almas Tenho (2023), em codireção com Cavi Borges
Mulheres em Auschwitz – Escritas da Resistência (2023), em codireção com Regina Miranda
Salto no Vazio (2019), em codireção com Cavi Borges

Filmes Faróis

“Quando comecei a fazer minha lista de filmes, lembrei do livro de Umberto Eco “A Vertigem das Listas”: “O resultado dessa caçada foi prodigioso, de dar vertigem….”   Em vertigem, escolhi  os filmes que me iluminam no meu percurso no cinema e me inspiram a seguir criando. “O artista que tenta elaborar uma lista, mesmo parcial, de todas as estrelas do universo quer de certa forma fazer pensar nesse infinito objeto”.                                                             

As Praias de Agnès (Les Plages D´Agnès, 2008), de Agnès Varda

Descobrir algo sobre si mesma. Descobrir algo sobre o cinema. Esse ponto de partida de As Praias de Agnès, uma viagem autobiográfica que transita entre o documentário e ficção me encantou. ‘Se você abrir uma pessoa, irá achar paisagens. Se me abrir, irá achar praias’. Essa geografia afetiva que começa numa praia em Noirmoutier com os espelhos voltados para Varda e para as pessoas que amou, conheceu e participaram de sua  formação como artista me inspirou profundamente. A possibilidade e beleza de refazer o percurso da vida e o processo criativo com fotografias, cenas de filmes, entrevistas, lugares, propostas encenadas, criando um poderoso diálogo com as artes visuais. Nesse percurso está presente o comentário sobre questões históricas importantes para Varda, como a relação com  movimentos sociais. Eu amo a forma autoral e livre que ela mistura todos esses recursos, principalmente com as artes visuais tão importantes na minha criação artística.

Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coup, 1959), de François Truffaut

Em Os Incompreendidos, a história é carregada de traços autobiográficos de Truffaut e a mistura real/ficcional me interessa muito. Gosto de transitar nessas fronteiras que na verdade são fluidas. O menino Antoine Doinel e Paris são as personagens do filme. As filmagens não ocorrem em estúdios, mas nas ruas, com planos abertos e cenas documentais de Paris – outro recurso que também me toca muito e gosto de explorar em nossos filmes de viagem.  A brilhante atuação de Jean‐Pierre Léaud, que estreava aos 14 anos, como Doinel, é outro ponto comovente. A catarse do garoto no brinquedo do parque, onde a câmera acompanha os giros intensos, nos levando para a experiência junto com ele, é uma das minhas cenas preferidas na vida. Um detalhe importante é que um dos figurantes que entra no brinquedo junto com Antoine é o próprio Truffaut. Acho que isso fala muito da relação intrínseca de Truffaut com o filme e com o cinema. Para além das questões de linguagem cinematográfica que o filme propõe, eu sinto em Os Incompreendidos o amor e paixão de Truffaut pelo cinema em todos os detalhes do filme. Um francês racional que acreditava que o cinema é um ato de amor.                                                                     

Elena (2012), de Petra Costa 

Elena é um documentário extremamente pessoal,  um mergulho corajoso em memórias dolorosas. O filme não é uma investigação apenas sobre a personagem-título, mas também sobre a realizadora, que é atravessada visceralmente pela perda da irmã. O documentário acaba se expandindo para além das memórias sobre Elena e se torna uma investigação sobre os efeitos de sua morte sobre sua mãe e sua irmã que escorrem em águas profundas. A correnteza as leva adiante junto com muitas mulheres que foram levadas pelas águas. Explorando a linguagem cinematográfica, o filme constrói uma ponte entre o pessoal e o universal mergulhando em temas  ontológicos como a morte /suicídio e feminino. Isso é muito precioso para mim e sempre busco nos meus trabalhos construir essa ponte do pessoal ao universal porque me emocionam narrativas na primeira pessoa. A realizadora Petra Costa constrói a partir de suas próprias cicatrizes um filme  belo, poético e terrível como a vida.     

A Entrevista (1966), de Helena Solberg

Equipada com um gravador que ela mesma operava, Solberg entrevistou 70 mulheres. As entrevistas incluem as aspirações e incertezas das mulheres na época. Achei muito interessante como ela usou essas entrevistas em oposição ao sentido da imagem, que acompanha todo o ritual da noiva no dia do casamento. Enquanto os discursos desconstroem os conceitos de casamento romântico, pureza feminina, o papel da esposa ideal, a performance da noiva revela, num efeito crítico, o contrário. A oposição, a divergência entre discurso e imagem me fez refletir bastante sobre como pode ser interessante investigar essa relação. A Entrevista é um filme que me fez investigar profundamente e dar importância para as infinitas possibilidades entre imagem e som. A obra toda da Helena Solberg é muito instigante,  mas  A Entrevista eu acho sensacional por ser um filme que aborda as questões feministas de forma muito aprimorada cinematograficamente.                                                              

Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima, mon amour, 1959), de Alain Resnais

Me lembro da sensação arrebatadora de assistir a primeira cena de Hiroshima, Meu Amor. Os corpos dos amantes cobertos de cinzas, fazendo gestos de amor e, simultaneamente, interligados  com a pele queimada das vítimas do ataque atômico. Aquela textura da película com tantas camadas eu nunca esqueci!!!! Quando a mulher diz que já viu tudo em Hiroshima, ele diz que ainda não viu nada. Hiroshima, Meu Amor é um filme que apresenta uma dupla dimensão: uma dimensão íntima e uma dimensão histórica. Eu sempre fui  aficionada pela obra de Marguerite Duras e seu encontro com Alain Resnais foi magnífico. Resnais e Duras traçam  um paralelo entre o destino de dois amantes e o horror coletivo das vítimas da bomba atômica. A combinação do texto de Duras com a mistura de imagem, som e música de Resnais me impactou profundamente. As cenas de documentários, sequências de amor, passado e presente, cidade e indivíduo, paixão e desespero,  e a palavra OUBLIER ressonando em mim até hoje.  A possibilidade de juntar literatura e cinema de forma tão potente me apaixona. Desejo fazer filmes com esse imenso desafio, e Hiroshima, Meu Amor é uma grande inspiração.   

Vídeo Cartas (Walden: Diaries, Notes and Sketches, 1974), de Jonas Mekas

Gosto do desafio  de Mekas  de filmar o que está acontecendo no momento presente. O filme como um diário, um exercício diário, livre para investigar o tempo presente e sua essência. A câmera como prolongamento do corpo que produz imagens no desejo de olhar a vida e sua complexidade. Encontrar beleza e poesia nos pequenos detalhes do cotidiano. Eu adoro cartas escritas à mão…. Cartas de amor, cartas de despedida, cartas de apresentação…. A possibilidade de adicionar imagens às cartas me entusiasmou para a pesquisa de um cinema autoral. Em Salto no Vazio, meu primeiro longa com Cavi Borges, acompanhamos as trocas de vídeo-cartas de dois artistas viajando pelo mundo. Essa estrutura foi libertadora para mim.     

O Espelho (Zerkalo, 1975), de Andrei Tarkovsky

Quando assisti O Espelho pela primeira vez fiquei muito impactada com o mergulho que o filme faz na memória e nos sonhos embaralhando história e subjetividade. Muitas camadas se desdobram e interagem  de forma sensorial e poética numa experiência especialmente cinematográfica. O passado está presente na casa de infância e seus  objetos investigando a capacidade da memória de realizar uma reconstrução da vida, algo primordial e impactante  para a personagem principal. Me lembro da emoção de assistir a primeira cena do vento na grama alta, a chuva dentro e fora de casa, a terra e o fogo finalizando ciclos da vida. Os elementos da natureza anunciando epifanias. O Espelho é um filme que  reverbera em mim reforçando o desejo de Tarkovsky: esculpir e imprimir o tempo. Investigar o tempo é um dos motivos que me levam a fazer cinema.   A ideia de “Filme Farol” é vigorosa porque o filme convida a uma viagem pela memória onde tudo permanece um grande mistério, assim como os filmes.                                              

Tramas do Entardecer (Meshes of the Afternoon, 1943), de Maya Deren

O cinema de Maya Deren  é um cinema obsessivo  na sua busca pelo corpo, pelo desejo do corpo no mundo. A ação física cria uma pista por onde as imagens deslizam criando um lugar de permanente diálogo entre os corpos e o corpo do cinema. Me apaixono pela  experimentação da linguagem cinematográfica e suas possibilidades em todos os filmes de Deren. Em Tramas do Entardecer, Deren e Alexander Hammid investigam uma narrativa em espiral, que combinada a uma edição concebida como uma “Geografia Criativa” cria uma experiência inesquecível  de tempo e espaço. Tramas do Entardecer é um dos filmes experimentais independentes mais importantes  produzidos no século XX,   sendo um Farol na minha caminhada no cinema. Ao acreditar no cinema como forma de arte e investigar profundamente a relação do corpo com a câmera, Maya Deren me inspira a criar todos os dias.