Sylvio Back

Publicado originalmente em outubro de 2007

Um dos mais importantes e provocativos documentaristas brasileiros, Sylvio Back está amolando o sabre para mais uma investida no cipoal de mitificações da História do Brasil. Dessa vez, será a Guerra do Contestado, que empapou de sangue o sertão catarinense entre 1912 e 1916. O episódio já havia sido objeto de um filme de ficção de Back, A Guerra dos Pelados (1971), sua maior aproximação à vertente glauberiana do Cinema Novo.

Outros acontecimentos já foram desbastados pelas lentes de Sylvio Back. República Guarani pôs em xeque a missão civilizatória dos jesuítas junto aos índios brasileiros. Guerra do Brasil confrontou os discursos de vencedores e vencidos da Guerra do Paraguai. Revolução de 30 tentou provar que nunca houve uma Revolução de 30. Yndio do Brasil denunciou a expropriação da imagem do índio pelo audiovisual. Rádio Auriverde, seu filme mais polêmico, ousou retratar a participação dos pracinhas na II Guerra Mundial como aventura tragicômica em vez de propriamente uma saga heróica.

Em matéria de linguagem, Back é um exímio articulador de materiais de arquivo e usa como poucos a dramaturgia da entrevista, especialmente na sua edição. Vez por outra, experimenta ilustrações gráficas que podem ou não enriquecer sua gramática. Em curtas, já utilizou métodos atrevidos como filmar sessões espíritas (Auto-Retrato de Bakun) e um recital minimalista da poeta Helena Kolody (A Babel da Luz).

Seis longas foram lançados em DVD pela Versátil/Cultura Marcas dentro da Cinemateca Sylvio Back. Agora a Europa está colocando no mercado seu último fic, o belo e solene Lost Zweig. A agenda do diretor está cheia. Em Belo Horizonte, no próximo dia 30, a pré-estréia mineira de Lost Zweig coincide com a presença do diretor no evento Terças Poéticas, do Palácio das Artes. No Festival de Brasília, em novembro, ele lança os roteiros de Lost Zweig e Aleluia, Gretchen (este em reedição). Para março de 2008, está previsto o lançamento do roteiro de A Guerra dos Pelados (Ed. Annablume), encorpado por ensaios, seleção de fotos, diário de filmagem e um conto inédito de Back que tematiza o Contestado.

A veia de poeta erótico continua irrigada. Em dezembro chega às estantes das livrarias o seu quarto livro do gênero, deliciosamente intitulado As Mulheres Gozam pelo Ouvido (Ed. Demônio Negro, SP). Enquanto isso, ele prepara O Cineasta no Invisível, coletânea de ensaios sobre cinema.

Por um mal-entendido na consulta sobre seus filmes-faróis, Sylvio Back acabou enviando duas listas: uma de fics, outra de docs. Achei por bem publicar as duas:

“O cinema nasceu documentário, depois a ficção é que se impôs.

Primeiro o cinema foi puro entretenimento, só depois se impôs como arte.  

Como nunca vi nem vejo diferença entre documentário e ficção (onde começa um e termina o outro? e vice-versa), nem entre arte e entretenimento (quando um é outro? e vice-versa), o importante é a linguagem e a pegada moral do filme. Não seu gênero, formato ou fruição.

São inúmeros os filmes que influenciaram o meu cinema, ou que não me abandonam a retina, a mente e o ventre. Todos eles trespassam indelevelmente a minha paixão de cinéfilo. Diria que é uma lista incomensurável, ainda que à medida dos anos, ironicamente, ela venha diminuindo. Como se o cinema estivesse envelhecendo comigo… Uma sensação do fotograma já visto é inelutável.

Mas, ao mesmo tempo, na contramão dessa percepção, digamos, existencial, novos inventores da narrativa cinematográfica (como Angelopoulos, Lynch, Von Trier, Kitano, Sokúrov, Kar-Wai, Kusturica) surgem e fundem a fronteira entre arte e entretenimento, tornando-a cada vez menos nítida e urgente.

Quem sabe tem sido essa a razão, ante as novas mídias como o digital, a Internet, o celular, que lhe garantem o permanente viço e empatia e, portanto, a sua incólume sobrevida. Nada há que supere o encantamento de ver (e ouvir) um filme projetado numa tela de quinze metros.

Em ordem alfabética, pois como dizer que um é mais significativo do que o outro se todos direta ou indiretamente continuam latejantes no meu subconsciente estético e moral:

1 – Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola

Brilhante simbiose entre história, militarismo, reflexão e poesia: talvez o maior filme de guerra de todos os tempos. Uma obra-limite e premonitória.

2 – Dançando na Chuva (1951), de Stanley Donen e Gene Kelly

A cultura dos Estados Unidos em estado bruto e lapidado, ao mesmo tempo:
uma obra-prima do filme-musical, e sobre o cinema de Hollywood e seu “star system”.

3 – La Dolce Vita (1960), de Federico Fellini 

Notável baixo-relevo de uma crise existencial. Um angustiante “road movie” moral, com nítida conotação autobiográfica, através da solidão e da náusea do homem moderno.

4 – Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman

Sobrepondo memória, sonhos, volições, a fugacidade do aqui e do agora, o filme é de uma força dramática e imagética única. Além de magistral como mergulho na ante-sala da morte.

5 – O Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima

As sapequices de Eros flagradas na mais alta amperagem visual da história do cinema. Um filme deflagrador pela ousadia temática, pela sensualidade explícita e por sua coragem ética.

Em tempo: numa primeira leitura de sua pesquisa, entendi que era para declinar quais seriam os documentários que mais me impressionaram e que, igualmente, eu consideraria os melhores. Daí surgiu a lista abaixo, que só corrobora o intróito e o repertório ficcional acima, pensado posteriormente, quando me dei conta do luminoso equívoco.

1 – Corações e Mentes (1074), de Peter Davis

A melhor síntese entre cinema e jornalismo jamais realizado. E inigualável como libelo sobre o horror à guerra.

5 – Hitler, Um Filme da Alemanha (1978), de Hans-Jürgen Syberberg

Original mix entre cinema, rádio, música, teatro, marionetes, sem narrador, o doc desvela as raízes ideológicas e estéticas do nazi-fascismo. Uma obra-prima do cinema de colagem/bricolagem.

3 – It’s All True (É Tudo Verdade, 1942), de Orson Welles

Depois deste tristemente belo It’s All True, filme selvagem, mas cheio de inocência e humanidade, Welles nunca mais foi o mesmo. Mas ali deitou as sementes do moderno cinema brasileiro.

4 – Le Chagrin et la Pitié (1970), de Marcel Ophüls

Polêmico filme que põe de joelhos uma nação inteira: uma antológica expiação pública através dos mil olhos e vozes do cinema.

4 – Nuit et Brouillard (Noite e Neblina, 1955), de Alain Resnais

Toda a genialidade que Resnais acaba revelando depois na ficção (em Hiroshima Mon Amour e O Ano Passado em Marienbad), nasce com esta brilhante, ainda que cruel, metáfora sobre o esquecimento.”