Tata Amaral é uma das mais sólidas autoras do cinema urbano contemporâneo no Brasil. Filmes como o curta Viver a vida (1991) e os longas Um céu de estrelas (1996), Através da janela (2000) e Antonia – o filme (2006) deram provas de uma sensibilidade afinada com o feminino e as micropolíticas do cotidiano. Seu filme mais recente, Hoje, alia esse universo a um tema bastante frequente no cinema brasileiro recente, que são os ecos do regime militar. A seguir, Tata comenta esse filme, seus próximos projetos e a parceria com sua filha Caru Alves de Souza.
Hoje e os filmes sobre a ditadura
No que diz respeito a filmes que falam sobre a ditadura, acho que Hoje traz como novidade o fato de não ser um flashback, não contar uma história que está no passado. O filme conta uma história que se passa HOJE, mas cuja raiz está no passado, na época em que os personagens foram militantes contra a ditadura militar.
O que buscamos foi expressar, de maneira consciente, uma atitude de nós, brasileiros, perante nossos traumas: buscar esquecê-los, escondê-los debaixo do tapete. Isto fica claro quando pensamos na nossa postura como cidadãos: no Brasil, ao contrário dos demais países da América Latina, nunca identificamos ou punimos os crimes de tortura. Muitos alegam que, mesmo que quiséssemos identificar e punir os torturadores, a pena já prescreveu, pois se passaram 30 anos da anistia, que foi em agosto de 1979. No entanto, a tortura é crime de lesa humanidade e portanto a pena é imprescritível.
Os tempos de Hoje
Em termos formais, Hoje se constrói sobre a ideia de que não é possível esquecer o passado, nossos traumas e as emoções ligadas a estes. As projeções têm essa função, a de fazer com que as emoções – não os fatos, mas as emoções decorrentes deles – convivam no mesmo espaço/tempo que as ações diegéticas.
Assim, Hoje rompe com a ideia de linearidade do tempo/espaço, pois tudo pode acontecer ao mesmo tempo: Vera está na sala com Luiz contando como ela pensou em se matar, de tanta falta que sentia dele, e a porta “vira” uma janela evocando aquela pela qual Vera pensou em se jogar.
HOJE é o tempo/espaço onde todos os tempos e todos os espaços podem conviver.
O futuro próximo
No momento estou trabalhando na finalização de Trago Comigo para longa-metragem, a partir do material bruto filmado para a minissérie homônima da TV Cultura. A previsão é terminá-la no primeiro semestre de 2013. Estou também trabalhando num novo projeto, uma história de amor da minha adolescência. Amor e militância, amor e sonho. Caru, minha filha, está escrevendo o roteiro.
O trabalho com a filha
Caru e eu temos uma relação profissional das mais criativas. Ela gosta muito de escrever e duas vezes escreveu roteiros para eu dirigir: os curtas Emília escreve um diário e Carnaval dos deuses, este em parceira com Teo Poppovic. Quando eu dirijo, ela produz e vice-versa. Produzi seus dois curtas: Assunto de família e O mundo de Ulim e Oilut. Agora ela dirige seu primeiro longa-metragem, De menor, e escreve Sonhos de Rossi, que é uma espécie de continuação do curta Assunto de família.
Eu sinto muita felicidade em trabalhar com ela. Admiro sinceramente seu trabalho, seu jeito de construir os filmes, tão diferente dos meus. Não sei se ou quanto seguiremos juntas, mas tenho certeza de que seu caminho será lindo e luminoso.
Os filmes-faróis de Tata Amaral
Rio 40 graus, deNélson Pereira dos Santos
Quando assisti a esse filme, no final dos anos 1970, pensei que eu queria fazer cinema no Brasil e buscar aquela força narrativa, criar personagens que nos dizem respeito e com os quais podemos nos identificar porque são nossos.
Acossado (À bout de souffle), de Jean-Luc Godard
Mais um filme realista para minha coleção do coração. Senti enorme impacto quando assisti: a liberdade narrativa me cativou, os olhares do Belmondo para a câmera, a elegância e rebeldia dos personagens, Paris… tudo me encantou! Uma história contada do ponto de vista de um personagem, com toda a riqueza das suas contradições e fraquezas. Era a época em que nos apaixonávamos pelos anti-heróis.
Noite e neblina, de Alain Resnais
Assisti ao filme ainda adolescente. Além do horror pelas imagens dos campos de concentração do nazismo, o filme me impressionou pelas possibilidades narrativas do documentário e me fez refletir sobre a diferença entre reportagem e cinema.
O vento, de Victor Sjöstrom
Como eu posso ouvir som num filme mudo? Este filme me ensinou sobre o poder das imagens, do plano, do frame.
Outubro, de Serguei Eisenstein
Estudando esse filme, aprendi sobre a construção do discurso e sobre como ele parte de um lugar, de um emissário, portanto cria significados, emite opiniões, conceitos, propaga ideias, provoca. Além disso, tomei contato com a teoria dos ideogramas.
A noite e Passageiro, profissão: repórter (The passenger), de Michelangelo Antonioni
Que beleza de travellings e de deambulações! A noite mostra que o cinema também pode passear por aí… Em Passageiro, a descoberta do plano-sequência.
Guerra nas Estrelas, de George Lucas
O desfrute do espetáculo.
12 Homens e Uma Sentença (12 Angry Men), de Sidney Lumet
Cheguei tarde em casa e liguei a televisão. Estava passando esse filme. Não sabia de quem era e do que se tratava. Estava cansada mas parecia interessante. Pensei: no primeiro flashback eu desligo a TV e vou dormir. Fiquei até o final. Com exceção das sequências inicial e final, este se passa todo dentro de uma sala. Foi um farol para o futuro Um céu de estrelas.
Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Kátia Lund
Estava há alguns anos buscando viabilizar o filme Antônia, que queria fazer com não atores. Tudo o que eu ouvia é que o cinema brasileiro que dá certo é aquele que produz comédias de costumes com atores conhecidos. Cidade de Deus rompe esse paradigma de maneira espetacular.
Nostalgia da Luz, de Patricio Guzmán
É um filme de extrema poesia que fala de um tema sobre o qual estou trabalhando no filme Hoje: a memória e a necessidade de se lembrar daquilo que é doloroso.