Publicado originalmente em setembro de 2011
Victor Lopes está a ponto de se tornar o mais eclético dos realizadores brasileiros. Não fossem algumas pendências de direitos, ele já estaria mostrando no Festival do Rio o esperadíssimo Serra Pelada, documentário que promete ser definitivo sobre aquele pedaço da história recente brasileira. Há pouco concluiu as filmagens principais de Agamenon – o Filme, faltando agora os “depoimentos” que vão ancorar esse falso documentário. Se será o Zelig brasileiro, só a estreia em 2012 o dirá. Ao mesmo tempo, Victor finaliza uma série sobre o Enem para o Canal Futura. “É um retrato de uma geração de brasileiros, em torno dos 17 anos, que está protagonizando uma grande transformação, principalmente no interior do país”, resume.
Se você prestar atenção, encontra na fala de Victor Lopes um resquício de sotaque lusitano, sobretudo nos seus momentos de entusiasmo oral, quando fala de cinema. Victor nasceu em Moçambique, tem nacionalidade portuguesa e radicou-se no Brasil há cerca de 30 anos. Em 2004, ele passeou pelo idioma de Camões, Machado e Mia Couto no doc Língua – Vidas em Português, rodado no Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Goa (Índia), França e Japão.
Conheci-o em 1994, no rastro do sucesso de Vênus de Fogo, vídeo-alerta sobre Aids para prostitutas que virou cult dos antenados de então – uma geração que lhe deve, no mínimo, a fundação do histórico Núcleo Atlantic de Vídeo. Os trabalhos de Victor para a TV incluem as séries Noções de Coisas, escrita por Darcy Ribeiro, e Free Jazz, composta de 45 docs musicais dirigidos em parceria com Roberto Berliner. Realizou, ainda, TVdocs sobre dança contemporânea e quatro trabalhos para a vídeo-instalação permanente do Museu da Língua Portuguesa, em SP. Para a Copa do Mundo de 2006, criou em Berlim uma instalação de 42 metros de altura, simulando um estádio virtual com jogadas históricas de Pelé. Perdeu a conta dos prêmios recebidos por seu curta de ficção Bala Perdida.
Suas escolhas de filmes-faróis e, mais ainda, a qualidade de seus comentários revelam uma compreensão profunda dessa consulta aos cineastas brasileiros. São observações pessoais, refletidas e bem apresentadas. Confiram:
O Homem com a Câmera, de Dziga Vertov
Num mundo onde em breve teremos mais câmeras do que pessoas, a dinastia dos Kinoks estava apenas começando. Um filme vertiginoso, arrebatador, inesquecível e inalcançável por conta da montagem sagrada do cinema mudo. É parte de uma família muito especial de filmes sobre o cotidiano e a transformação da paisagem urbana durante a década de 20 em que tenho uma predileção por Rien que les Heures,de Alberto Cavalcanti (uma presença vital na minha história do documentário), e Chuva, de Joris Ivens. Assisti durante um curso com José Carlos Avellar, Ronald Monteiro e Cosme Alves Neto no MAM, aos 17 anos, e me lembro até hoje do sentimento de andar por aqueles corredores e sentir a certeza de que pertencia a alguma coisa. Para mim o ritmo é um elemento essencial no Cinema, e O Homem com a Câmera marcou uma certa forma sensorial, invisível e percussiva que atravessa os filmes que mais me impressionam em todas as épocas e gêneros. Para além do futuro, ficam também os textos de Vertov. E tudo começou com cidades em silêncio.
Gare du Nord, de Jean Rouch
O filme que me apresentou a Jean Rouch é o seu único trabalho em ficção que conheço, episódio de Paris visto por… Um curta composto por um plano-seqüência magistral que marca também a ascendência de Rouch na genética da Nouvelle Vague. Só depois fui mais fundo na obra deste homem incrível, poeta entre mundos, eras e culturas diferentes que antecipa o planeta migrante que atravessamos hoje. Crônica de um Verão, Eu, um Negro, Jaguar, e Os Mestres Loucos são forças profundas que acompanham todo documentarista quando liga a câmera, mesmo que ele não saiba disso. A primeira versão de Língua, exibida só no circuito de festivais, abria na Gare du Nord com um enorme plano-sequência casual que acabava num beijo não encenado de um casal se encontrando. A cena, pensada em homenagem a Rouch, ficou excelente mas, supérflua para o filme, foi cortada na versão final lançada nos cinemas.
I Clowns, de Federico Fellini
Um documentário felliniano que mora também na dimensão afetiva de uma sessão na casa de Joaquim Pedro de Andrade em 1983, depois do seu curso no Circo Voador. Na minha formação, representou a afirmação do documentário como uma força poética e cinematográfica capaz de avançar em novas possibilidades de narrativa e realização. Já marcado pelo ideário de Glauber (o caminho do cinema são todos os caminhos), foi o filme que me mostrou que fazia sentido dirigir ficção e documentário. Ainda que os dois só se misturem como farsa – ou F for Fake – posso apontar a sequência do enterro do palhaço como uma de minhas prediletas na história do cinema.
Short Cuts, de Robert Altman
O conceito dos contos originais de Raymond Carver já seria por si só uma boa definição do documentário, ou de uma de suas muitas formas: levantar os telhados das casas, entrar e atravessar a vida de algumas pessoas. Nas mãos de Robert Altman, mestre em narrativas com muitos personagens, tornou-se uma obra-prima que instiga a construção de dramaturgias mais amplas. Acho que o filme tem muito a ver com a narrativa documental e foi um farol importante na elaboração de Língua. Penso que há sempre a presença de uma dramaturgia na realização do documentário, seja ele contemplativo, investigativo ou experimental.
Santo Forte
Eduardo Coutinho já está introjetado nos corações e mentes de cada documentarista brasileiro. Ainda que o nosso ofício seja profundamente marcado por Cabra Marcado pra Morrer, para mim, Santo Forte foi uma revelação que depurou novas formas de concisão, poesia, reverência pelo “personagem” e uma intensa densidade humana. Um documentário que clareou a minha aproximação das histórias por contar, ou ouvir, e alterou a minha percepção fílmica do mundo. Pontual, um filme feito de conversas que levou o público aos cinemas, e marcou o início de um ciclo vital para o documentário e sua potência no cinema brasileiro contemporâneo.