Vinícius Reis

Publicado originalmente em novembro de 2011

Para escolher e comentar seus filmes-faróis, Vinicius Reis largou por um instante a edição de seu terceiro longa, Sobre Ruínas [futuro Folia de Reis], drama ambientado na família de um rabequista de Folia de Reis. Mais uma vez nesse filme, ele está utilizando as heranças diversas de sua formação. Do teatro, que praticou com Maria Clara Machado no Tablado, vem o prazer no contato direto com os atores (“o filé mignon do trabalho”, como ele diz). Do documentário, onde se exercitou inicialmente e fez o longa A Cobra Fumou, traz a busca por um “efeito de real” que aparecia forte no ficcional Praça Saens Peña.

Vinicius Reis é um típico artista gestado na contemporaneidade. Cinéfilo desde os 11 anos de idade, ator amador e depois profissional, diretor de vídeos e curtas como Gentileza e Nós do Morro, ex-presidente da ABD-Rio, envolveu-se profundamente com o lado social do cinema. Fundou com Rosane Svartman o Núcleo de Cinema do Nós do Morro, no Vidigal, em cujo cineclube continua debatendo filmes com os alunos. Depois de viajar com veteranos da FEB à Itália em A Cobra Fumou, co-dirigiu um doc sobre o jurista Evandro Lins e Silva, O Vício da Liberdade. Sua estreia na ficção, com Praça Saens Peña, foi recebida como um belo exemplar de comédia urbana que enfocava um bairro do Rio, a Tijuca, menos agraciado pelas lentes dos cineastas brasileiros.  

Os faróis de Vinicius são aqui apresentados como uma espécie de romance de formação de um cineasta a partir dos anos 1980. Seus comentários denotam uma atenção especial para a linguagem dos filmes e uma memória marcada por cenas específicas. Aí estão:   

E.T. – O Extra-terrestre, de Steven Spielberg

Primeira manifestação de cinefilia. Vi várias vezes, em sessões seguidas no América, na Praça Saens Peña. Descobri, com 11 anos,  a força de ver um filme numa sala escura, cheia de gente desconhecida. A cena das bicicletas voando pelo subúrbio de classe média americana surge forte agora. Peguei carona numa daquelas bicicletas e estou voando até hoje!

A Idade da Terra, de Glauber Rocha

Vi com 16 anos, na Mostra Glauber por Glauber na Sala 1 do antigo Estação Botafogo. O filme agiu como uma bomba de liberdade e  invenção na cabeça e no corpo de um adolescente cheio de espinhas e com aparelho nos dentes.  Descobri que o cinema podia ir além do que eu imaginava. Lembro de pensar: “quer dizer que isso tudo pode?!?!”. Cenas que aparecem enquanto escrevo essas linhas: o amanhecer em Brasília, alguns closes de Jece Valadão; Tarcísio Meira repetindo “A terra é a cloaca do universo!”; a coreografia de Ana Maria Magalhães; Glauber  e João Ubaldo Ribeiro abraçados numa praia; Paula Gaitan dançando…  

Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade

Paulo José e Dina Sfat se amando numa garagem ao som de “Essa garota é papo firme”, do Roberto Carlos, é uma cena que faz você desejar o cinema. Descobri a antropofagia em uma tarde de 1987, no Estação Botafogo!  O filme me levou a estudar Mário de Andrade; nas pesquisas, conheci Oswald de Andrade e acabei deixando o Mário um pouco de lado. Macunaíma, o filme, e Macunaíma, o romance – nessa ordem – iniciaram um processo pessoal de descolonização, ainda inacabado.

São Bernardo, de Leon Hirszman

A força dos planos-sequências, a narração em off, Othon Bastos e Isabel Ribeiro arrasando; as diversas vozes do Caetano Veloso numa das mais belas trilhas do cinema brasileiro. Um filme que me levou a querer fazer cinema. Vi na cinemateca do MAM, início dos anos 1990.

Santo Forte, de Eduardo Coutinho

Filme fundamental, determinante, transformador, que me fez rever Godard com um olhar mais esperto; que me apresentou Straub e Ozu; que me ensinou a potência do som direto e tantas outras coisas! Penso muito nesse filme, sempre.

Superoutro, de Edgard Navarro

Foi um programa do final dos anos 80, início dos anos 90. O filme ficou em cartaz muito tempo na sala 2 do Estação. Íamos em turma ver o filme, como se fossemos a uma festa. Voltávamos no dia seguinte, na semana seguinte para rever… Depois dessas sessões, passávamos horas conversando sobre o filme e sobre cinema.

A Chinesa, de Jean-Luc Godard

Os enquadramentos fixos, um som para cada cena, as cores saturadas, a violência, a alienação, os atores lendo o texto, o cinema dentro do cinema.  O roquenrol maoísta. O filme ficou em cartaz longo tempo na sala 2 do Estação, no fim dos anos 1980, e o revi várias vezes. Há uma simplicidade na realização (um apartamento, uma turma, uma pequena equipe, uma certa improvisação) que é muito sedutora para quem quer começar a fazer cinema.

Memórias do Subdesenvolvimento, de Tomás Gutiérrez Alea

A narração em off, a câmera na mão, às vezes colada no personagem; as lentes 85mm, 100 mm;  os desfocados, os closes da abertura que lembram muito o closes do Antropologia da Face Gloriosa (série fotográfica de Arthur Omar), a descontinuidade. Vi pela primeira vez em Londres, num cinema de arte no centro da cidade, na primeira vez que estive lá, em 1996. Foi uma experiência boa ver esse filme pela primeira vez na Europa.

O Pântano, de Lucrecia Martel

Os ruídos, o timbre das vozes, o murmúrio, a potência do que não está em quadro, o mistério do som! Filme definitivo. De tempos em tempos o revejo.

Filmes de Claire Denis

Recentemente descobri Claire Denis, que se tornou uma musa inspiradora. Numa tacada só aponto três filmes que tenho visto, revisto, estudado e que têm me iluminado: Trouble Every Day, Sexta-feira à Noite e Bom Trabalho, pela maneira carinhosa com que ela trabalha com os clichês, pela maneira de colar o olhar  – e os sentidos! – do espectador na pele dos personagens.